BARRO
NU (Os Arautos Negros)
Erguem-se
visagens fúnebres do lábio
como batráquios terríveis na atmosfera.
Pelo Saara azul da Substância
caminha um verso cinza, um dromedário
Fosforesce
um esgar de pesadelos cruéis.
E o cego que morreu repleto de vozes
de neve. Madrugar o poeta , o nômade,
é um dia áspero para ser homem.
As
Horas seguem febris e abortam
nos ângulos rubros séculos de ventura.
Quem corta o fio, quem desfaz
impiedosamente os nervos,
cordéis já gastos, na tumba?
Amor!
E tu também. Pedras gastas
se delineiam na tua máscara que se rasga
Contudo, a tumba é
um sexo de mulher que conquista o homem!
(Trad.
Jorge
Henrique Bastos)
XIII (Trilce)
Penso
em teu sexo.
Reduzido o coração, penso em teu sexo
diante do raiar maduro do dia.
Digito o botão da felicidade, está preparado.
E desaparece o sentimento antigo
degenerando com prudência.
Penso
em teu sexo, o sulco mais fecundo
e harmonioso que o ventre da Sombra,
embora a Morte possa conceber e gerar
o próprio Deus.
Oh
Consciência
penso, sim, no animal livre
que copula onde quer, onde pode.
Oh
, escândalo de mel dos crepúsculos
oh estrondo mudo
odumodnortse!
XXIII
(Trilce)
Moinho
candente dos biscoitos,
pura gema infantil e inumerável, mãe.
Oh
os quatro remoinhos assombrosamente
por mondar, mãe: os infelizes.
As duas irmãs, Miguel que morreu
e eu arrastando
uma trança por cada letra do alfabeto.
Repartias
na sala de cima
de manhã e a tarde, trabalho em dobro,
as hóstias soberbas do tempo
para que não sobrassem
as cascas dos relógios parados à meia-noite
em ponto.
Mãe,
e agora? Em qual alvéolo
ficaria, em que rebento capilar,
certa migalha que sufoca a garganta
e não quer passar. Hoje, até
os ossos puros se transformam em farinha
que não será amassada
a terna doceira do amor!
Até a sombra crua e o grande molar
cuja gengiva lateja na covinha láctea
e inadvertido lavra e fervilha, observaste tantas vezes
as mãos cerradas dos recém nascidos.
A
terra há de ouvir no teu silêncio
como nos exigem
o aluguel do mundo onde nos abandonaste
e o valor daquele pão interminável.
E
cobraram-nos, embora fôssemos
ainda jovens, como havias de perceber,
não poderíamos arrebatar nada.
Quando foi que nos deste algo,
Diz, Mãe?
(Trad.
Jorge
Henrique Bastos)
ISTO
Sucedeu
isto entre duas pálpebras; tremi
no ventre, colérico, alcalino,
parado junto ao equinócio lúbrico
ao pé do frio incêndio que me devasta.
O
resvalo alcalino, digo,
mais perto do alho, sobre o sentido da calda,
no interior da ferrugem,
no ir da água e no rolar da onda.
O
resvalo alcalino, também,
era enorme na montagem colossal
do céu.
Que
dardos e arpões lançarei, se morrer
no ventre hei de dar em folhas de plátano sagrado
meus cinco ossos subalternos,
e no olhar o próprio olhar!
(Dizem
que nos suspiros criam-se
acordeões ósseos, táteis;
dizem que quando morrem os que se acabam assim,
falecem fora do relógio, a mão
a segurar um sapato solitário)
Compreendendo
tudo, coronel,
e tudo no sentido lastimável desta voz
castigo-me: extraio tristemente
durante a noite, as minhas próprias unhas
depois não possuo nada e falo sozinho,
inspeciono os semestres
e para encher as minhas vértebras, toco-me.
OUVE a massa, o teu cometa, escutai-os, não venhas carpir
a memória, gravíssimo cetáceo;
ouve a túnica com que estás sonâmbulo,
ouve a tua nudez, detentora do sonho.
Narra-te
segurando
a cauda de fogo e os chifres
em que acaba a crina do rasto atroz;
rompe-te em círculos,
forma-te, mas em colunas curvas
descreve-te atmosférico, ser vaporoso,
ao passo reforçado do esqueleto.
A
morte? Impugna todo o vestido!
A vida? Obsta parte da tua morte!
Fera venturosa, pensa,
deus desgraçado, despoja-te da fronteira.
Falaremos em breve.
(Trad.
Jorge
Henrique Bastos)
OS
ANÉIS FATIGADOS
Há
ânsias de voltar, de amar, de não ausentar-se,
e há ânsias de morrer, combatido por duas
águas unidas que jamais hão-de istmar-se.
Há
ânsias de um beijo enorme que amortalhe a Vida,
que acaba na áfrica de uma agonia ardente,
suicida!
Há
ânsias de... não ter ânsias, Senhor,
a ti aponto-te com o dedo deicida:
há ânsias de não ter tido coração.
A
primavera volta, volta e partirá. E Deus,
curvado em tempo, repete-se, e passa, passa
carregando a espinha dorsal do Universo.
Quando
as têmporas tocam seu lúgubre tambor,
quando me dói o sonho gravado num punhal,
há ânsias de ficar plantado neste verso!
PEDRA
NEGRA SOBRE PEDRA BRANCA
Morrerei
em Paris com aguaceiros
num dia de que já tenho a lembrança.
Morrerei em Paris - daqui não saio -
numa quinta-feira, como hoje, de outono.
Quinta-feira
será, pois hoje, quinta-feira,
em que estes versos proso, dei os úmeros
à pouca sorte, e nunca como hoje
voltei,com todo o meu caminho, a ver-me só.
Morreu
César Vallejo, espancavam-no
todos sem que lhes fizesse nada;
davam-lhe forte com um pau e forte
com
uma corda também; são testemunhos
as quintas-feiras e os ossos úmeros,
a solidão, os caminhos, a chuva...
POEMA
PARA SER LIDO E CANTADO
Sei
que há uma pessoa
que, dia e noite, me busca em sua mão,
encontrando-me, a cada minuto, em seu calçado.
Ignora que a noite está enterrada
atrás da cozinha com esporas?
Sei
que há uma pessoa composta de minhas partes,
que eu completo sempre que o meu vulto
cavalga sua exacta pedrazinha.
Ignora que ao seu cofre
não voltará nenhuma moeda que saiu com seu retrato?
Sei
o dia,
mas o sol escapou-me;
sei o acto universal que fez na cama
com alheia coragem e essa água morna, cuja
superficial frequência é uma mina.
Tão pequena é, acaso, essa pessoa
que até seus próprios pés assim a pisam?
Um
gato é a fronteira entre eu e ela,
mesmo ao lado de sua malga de água.
Vejo-a pelas esquinas, abre e fecha
sua veste, antes palmeira interrogante...
que poderá fazer senão mudar de pranto?
Mas
ela busca-me, busca-me. É uma história!
UM
HOMEM PASSA COM UM PÃO AO OMBRO
Um
homem passa com um pão ao ombro
- Vou escrever, depois, sobre o meu duplo?
Outro
senta-se, coça-se, tira um piolho do sovaco, mata-o
- Com que desplante falar da Psicanálise?
Outro
entrou em meu peito com um pau na mão
- Falar, em seguida, de Sócrates ao médico?
Um
coxo passa dando o braço a um menino
- Vou, depois, ler André Breton?
Outro
treme de frio, tosse, cospe sangue
- Convirá não aludir jamais ao Eu profundo?
Outro
busca no lodo ossos e cascas
- Como escrever, depois, sobre o infinito?
Um
pereiro cai de um telhado, morre, já não almoça
- Inovar, em seguida, a metáfora, o tropo?
Um
comerciante rouba um grama no peso a um freguês
- Falar, depois, da quarta dimensão?
Um
banqueiro falsifica o seu balanço
- Com que cara chorar no teatro?
Um
pária dorme com um pé às costas
- Falar, depois, a ninguém de Picasso?
Alguém
vai num enterro a soluçar
- Como em seguida ingressar na Academia?
Alguém
limpa uma espingarda na cozinha
- Com que desplante falar do mais além?
Alguém
passa a contar pelos dedos
- Como falar do não-eu sem dar um grito?
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Poemas
extraídos da edição:
"Antologia Poética de César Vallejo -
seleção, tradução prólogo e notas, José
Bento,
ed. Relógio D'Água, Lisboa, 1992"
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