César Vallejo

OS CAYNAS

Luís Urquizo lançou uma gargalhada e, engolindo a última pólvora do riso, sorveu avidamente a cerveja. Em seguida, ao colocar o copo vazio sobre o o zinco do balcão, quebrou-o e vociferou:
- Isto não é nada! Cavalguei muitas vezes sobre o lombo do meu cavalo que caminhava com os quatro cascos negros sempre virados para cima. Oh, o meu soberbo alazão! É o paquiderme mais extraordinário da terra. E mais do que cavalgá-lo, surpreende, maravilha, faz tremer de pavor o espetáculo simples e puro de linhas e movimentos que este potro oferece quando está parado, numa gravitação impossível sobre a superfície inferior de um plano suspenso no espaço. Não posso contemplá-lo assim, sem sentir-me alterado e sem deixar de fugir da sua presença, apavorado, como se a garganta fosse apunhalada.

É terrível! Assemelha-se a uma mosca varejeira, destas que pousam nas vigas que equilibram os tetos humildes. Isto é maravilhoso! É sublime e irracional!

Luís Urquizo fala e se entusiasma, o rosto fica marcado, como se jorrasse sangue, os olhos úmidos. Estremece, guilhotina sílabas, solda e acende adjetivos; imita um ginete, ensaia algumas fintas, revigora em interjeições glaciais as mais amplas insinuações da sua voz; gesticula, ergue o braço, ri: é patético, ridículo, inspira-se e contagia-se demencialmente.

Disse em seguida:
- Vou-me embora -. E correndo, saltou o umbral da taberna e desapareceu de imediato.
-Coitado! - exclamaram em uníssono -. Está completamente louco.

Urquizo estava, na verdade, desequilibrado. Não havia dúvida. Confirmava-o o curso posterior da sua conduta. Aquele homem continuou vendo as coisas ao contrário, alterando tudo, através dos cinco cristais enevoados dos seus sentidos enfermos. As pessoas de Cayna, o povoado onde habitava, fizeram dele o alvo da curiosidade cruel e do divertimento cotidiano de adultos e crianças.

Anos mais tarde, com a ausência de um tratamento oportuno, agravou-se a sua demência de uma forma quase mortal, chegando ao mais truculento e edificante drama do homem que tem o triângulo de dois ângulos, que morde o cotovelo, ri diante da dor e chora perante o prazer. Urquizo chegou a errar além das fendas eternas, onde correm para agrupar-se na harmonia e plenitude do som, os sete matizes cêntricos da alma e da cor.

Entretanto, encontrei-o uma tarde. Desde que o vi, a poucos passos antes de cruzarmos, despertara na minha desabituada piedade sobre aquele desgraçado que, além do mais, era meu primo em não sei qual remota consangüinidade materna. Ao lhe ceder o caminho para passar e saudá-lo, tropecei nas pedras da rua e encostei o meu braço no dele. Urquizo protestou colérico:

- Está louco?

A exclamação sarcástica do alienado fez-me rir; e mais adiante foi motivo de cavilações em que os mistérios da razão se transformam em espinhos, estagnando-se no cerrado e tormentoso círculo da lógica fatal entre os dois lados da cabeça. Porquê esta forma de indução para atribuir-me o descompasso de parafusos e motores que só havia nele?

Com efeito, este último sintoma transpassava já os limites da alucinação sensorial. Isto era mais transcendental, sem dúvida, desde que representava nada menos do que um raciocínio, o amarrar de cabos profundos, um dado da consciência. Urquizo devia, pois, acreditar nas suas capacidades, estava perfeitamente seguro disto e, desde o seu ponto de vista, era eu o verdadeiro louco por ter esbarrado nele sem motivo. Seguia este plano de raciocínio que se denuncia em quase todos os alienados, um plano que, por sua desconcertante ironia, fere e escarnece dos órgãos mais cordatos até tirar-nos toda a rédea mental e varrer todos os ritos da vida.

Por isso, a surda exclamação do louco cravou-se de tal forma em minha alma, chegando a comover o coração.

Luís Urquizo pertencia a uma família numerosa da região. Era muito querido pelos seus, que lhe prestavam todo o cuidado e a assistência carinhosa. Um dia, fiquei a saber de algo terrível. Todos os familiares de Urquizo que com ele conviviam, estavam loucos também. E mais. Todos eles eram vítimas de uma obsessão comum, de uma mesma idéia zoológica, grotesca, onerosa, de um ridículo fenomenal: acreditavam que eram macacos, e como tal viviam.

Minha mãe convidou-me uma noite para ir com ela saber do estado dos parentes loucos. Não encontramos ninguém quando lá chegamos, só a mãe de Urquizo que distraía-se a mexer num monte de papéis sujos, sob a lâmpada que pendia no centro da sala. Dado o isolamento e o atraso daquele povoado, que não possuía instituições de caridade, nem polícia, os doentes saíam quando queriam para a rua. Era vê-los cruzar a toda hora o povoado, entrar pelas casas, despertando sempre o riso e a compaixão de todos.

A mãe dos alienados ao nos ver, ganiu agudamente, franziu as sobrancelhas com força e selvageria; continuou a vibrá-las para cima e para baixo, lançou com um gesto mecânico a folha de papel que manuseava e acocorou-se sobre a cadeira com a rapidez infantil de um estudante que fica sério diante do professor, escondeu os pés, dobrou os joelhos até a altura do tronco e, nesta atitude, semelhante a uma múmia, esperou que entrássemos na casa cravando os olhos nas nossas figuras - irrequietos, móveis, inexpressivos e selváticos -, que naquela noite suplantaram assombrosamente os de um macaco. Minha mãe acostou-se a mim, assustada e trêmula, senti-me surpreendido por uma arrepiante sensação de espanto. A boca parecia furiosa. Mas não, sob a claridade da lâmpada, distinguimos naquela cara perdida, sob o cabelo que caía em crinas asquerosas até os olhos, começava logo a franzir-se e mover-se sobre o miserável e esfarrapado tronco, virando-se para os lados, como se estivesse sendo ajudada por forças invisíveis ou por ruídos misteriosos produzidos nas barras metálicas de um parque. A louca, como se prescindisse de nós, começou a esfregar e a catar a barriga, as costas, os braços, triturando os parasitas com os seus dentes amarelos. Às vezes gania longamente e espreitava à sua volta, olhava a porta, como se quisesse nos advertir. Minha mãe, transcorridos alguns minutos de expectativa e medo, fez-me um sinal para retroceder e abandonamos a casa.

Este fato ocorreu há pelo menos 23 anos, até que, após ter vivido distante dos meus familiares por causa dos meus estudos em Lima, regressei um dia a Cayna, o povoado que além de solitário e distante, era como uma ilha para além das montanhas ermas. O velho povoado de agricultores humildes, separado dos grandes focos civilizados do país por imensas e quase inacessíveis cordilheiras, vivia longos períodos de esquecimento e de absoluta falta de comunicação com as outras cidades do Peru.

Devo chamar a atenção para a circunstância assaz inquietante de não ter recebido notícias da minha família, nos seis últimos anos em que estive ausente.

Minha casa situava-se quase na entrada do povoado. Erguia-se um poente de maio - destes suaves e reflexivos poentes do leste peruano - sobre o povoado que, não sei porque razão, tinha naquela hora, na sua solidão e abandono exteriores, o ar de desgraça, um tenaz ar de abandono. Um aspecto de descuido e destruição ressumava por toda parte. Nem uma pessoa, e ao cruzar algumas esquinas os meus nervos endureceram-se, golpeados por uma súbita impressão de ruína. Sem dar-me conta, estive à beira de chorar.

O portão avermelhado e rústico da mansão surgiu aberto de par em par. Apeei do cavalo e ofegando de ternura desmedida, entorpecido por um presságio emocional, acalmando o animal suado, avancei pelo saguão adentro. Imediatamente, entre o ruído dos cascos, ergueram-se do interior gritos dissonantes e guturais, como se fossem doentes a uivar no meio da fadiga e do delírio.

Não posso explicar como tive a sensação de correntes pétreas que acorrentavam as minhas costas, os pulsos, os tornozelos, até sangrar, mordendo-me com dentadas ferozes, quando vislumbrei aquela matilha doméstica. A imagem antropóide da mãe de Urquizo surgiu instantaneamente na memória, e invadia-me ao mesmo tempo um pressentimento maior que as minhas forças; era uma espécie de certeza aziaga de que, minutos depois, estaria com todo o meu ser nas trevas.

Gritei alto, quase gemendo.

Nada. Todas as portas da habitação estavam totalmente abertas . Soltei as rédeas do cavalo, vasculhei os corredores, os pátios, os quartos. E novos grunhidos detiveram-me diante de uma escadaria que ascendia ao aposento mais sombrio e elevado da casa. Espreitei. Era misterioso.

Nenhum sinal de vida, nem um só animal doméstico. Insólitas mãos deviam ter alterado com astuciosa mudança de gosto e de todo o sentido de ordem e comodidade, a distribuição usual dos móveis e dos utensílios do lugar.

Saltei precipitadamente, guiado por uma secreta atração, os degraus da escada e transpus o espaço, observando com vagar. Fiquei detido ali com uma aflição inexplicável e arrepiante. Duvidei por breves segundos, e favorecido pelos últimos clarões do dia, olhei atentamente para dentro.

Colérico até causar terror, mortalmente desfigurado, vi num átimo um rosto macilento e selvagem entre as sombras. Ganhei coragem e - embora já percebesse tudo, oh, Deus! - parei diante da porta, esforçando-me para reconhecer a máscara terrível.

Era o rosto do meu pai!

Um macaco, sim! Toda a verticalidade truncada e o arrojo acrobático, todo o jogo de nervos. Toda a carnalidade facial e os gestos, o esqueleto, e até o pêlo eriçado. Oh! O fio sutilíssimo com que é tramada a membrana inconsútil da justa e matemática espessura suficiente que o tempo e a lógica universal estabelecem, tiram e transpõem entre as colunas da vida e o seu curso!

- Khirrrrr!...Khirrrr! - grunhiu nervosamente.

Posso assegurar que da sua parte ele não me reconhecera. Movimentou-se com destreza. Como que a se posicionar no antro onde se refugiara, e - preso a uma inquietude verdadeiramente própria de um gorila enjaulado, perante as pessoas que o observam e o importunam - saltava e grunhia, arranhava o estuque do antro vazio, sem deixar de me observar por um só instante, pronto para defender-se ou atacar.

- Meu pai! - supliquei, impotente e débil , e avancei para abraçá-lo.

Ele anulou bruscamente o seu ar diabólico, desarmando toda a sua feição indômita e pareceu salvar num só impulso toda a noite do seu pensamento.

Aproximou-se de mim , calmo, suave e terno, transfigurado em homem, como deve ter se aproximado de minha mãe no dia em que se abraçaram tanto e tão humanamente, até extrair o sangue com que encheram o meu coração e o impeliram para que pulsasse no compasso da minha fronte e das minhas plantas.

Mas quando acreditava já ter acendido uma luz nele, ao esconjuro milagroso do clamor filial, deteve-se a poucos passos, como que a corrigir o seu ato, no enigma da sua mente enferma. Ensaiou uma expressão desorbitada e distante na sua face barbuda e enfraquecida, com tanta força e vida interior que provocou em mim uma crispação a ponto de virar o olhar, despertando uma sensação gélida e de completo transtorno da realidade.

Tentei falar-lhe mais uma vez e com toda veemência. Sorriu de forma estranha.

- A estrela... - balbuciou languidamente. E lançou novos grunhidos.

A angústia e o terror me fizeram suar glacialmente. Emiti um soluço sentido, contornei a escada e saí daquela casa.

A noite debruçava-se sobre tudo.

O meu pai estava louco! Ele e todos os meus parentes acreditavam que eram macacos, assim como a família de Urquizo! Minha casa tinha se transformado num manicômio. Foram contagiados pelos outros parentes, sim uma influência fatal!

Porém, isto não era nada. Acontecera algo mais atroz e desolador . Um flagelo do destino, a ira de Deus. Não fora só a minha família que tornara-se louca. O povoado inteiro havia enlouquecido.

Ao sair de casa, caminhei sem destino, sofrendo choques e tremores morais tão fundos como nunca sofrera e que abateram ainda mais os meus sentidos.

As ruas tinham um ar de caminhos entaipados . Por onde andava, surgia-me um transeunte que fatalmente parecia simular um antropóide, um personagem mímico. A obsessão zoológica regressiva cujo germe nascera há muitos anos na testa funâmbula de Luis Urquizo, propagara-se em todos e em cada um dos habitantes de Cayna, sem variar absolutamente de natureza. A mesma idéia conquistara todos aqueles infelizes. Foram todos mordidos no mesmo ponto do cérebro.

Não guardo lembrança de uma noite mais repleta de tragédia e bestialidade, em cujas margens ásperas não havia mais luz natural do que as dos astros, já que em nenhum lugar vislumbrei luz artificial.

Até o fogo - obra e signo fundamental da humanidade - havia sido banido dali! Como que através dos domínios de uma ignorada espécie animal de transição, vagueei por este caos lamentável onde não pude dar - por muito que quisesse e procurasse -, com alguma pessoa livre deste pesadelo. Tudo indicava que havia desaparecido dali todo indício de civilização.

Pouco tempo depois de ter saído, devo ter regressado à minha casa. Parei logo no primeiro corredor. Nem um som, nem uma respiração. Cruzei a escuridão compacta que reinava, segui por um pátio e dei com o corredor da frente. O que acontecera com o meu pai e toda a minha família?

Uma serenidade invadiu a minha alma. Tinha que procurar a todo custo minha mãe, vê-la para saber se estava sã e salva, acariciá-la e ouvi-la chorar de ternura ao reconhecer-me, e abafar toda esta vileza. Tinha que procurar novamente o meu pai. Talvez todos os outros gozassem do pleno exercício das suas faculdades mentais.

Oh meu Deus, sim! Enganara-me sem dúvida, ao pensar de forma tão fácil. Agora, ciente do nervosismo dos primeiros instantes, e da má disposição em que havia estado a minha imaginação excitável para ter levantado tão horríveis castelos no ar. E, por acaso, podia estar seguro da demência do meu pai?

Uma leve brisa de esperança invadiu o meu interior.

Atravessei a primeira porta que alcancei no meio da escuridão, e ao avançar , sem saber porquê, senti que vacilava, ao mesmo tempo em que, inconscientemente, extraía de um dos bolsos uma caixa de fósforos e acendia o fogo.

Esquadrinhei a habitação, quando ouvi alguns passos que se aproximavam pelos corredores atropelando-se.

O sangue desapareceu de todo o meu corpo, mas não a ponto de deixar apagar a chama que acabara de acender.

Meu pai, tal como o vira naquela tarde, surgiu no umbral da porta seguido de alguns seres sinistros que grunhiam de forma grotesca. Apagaram de imediato a luz que eu trazia, e gritaram misteriosamente:

- Luz, luz!... Uma estrela!

Fiquei paralisado e sem palavra.
Mas, de um modo intempestivo, consegui reaver as forças para gritar desesperado:

- Pai! Recorda que sou teu filho! Não estás doente! Não podes estar doente! Deixa este grunhido das selvas! Não és um macaco! És um homem, oh, meu pai! Somos todos homens!

E acendi outro fósforo.
Uma gargalhada veio apunhalar-me o coração. E meu pai gemeu com uma lástima dilacerante, pleno de piedade infinita.

- Coitado, pensa que é um homem. Está louco...

E fez-se escuridão outra vez.
Arrebatado pelo espanto, distanciei-me do grupo tenebroso, a cabeça a balançar.

- Coitado! - exclamaram todos - Está completamente louco!...

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- E aqui estou, louco - acrescentou tristemente o homem que fizera esta estranha narração.

Aproximou-se então um empregado de uniforme amarelo e fez um gesto para que o seguisse, ao mesmo tempo que nos saudava, despedindo-se de lado:

- Boa tarde, agora levo-o para o seu quarto, boa tarde.

E o narrador louco daquela história perdeu-se junto com o seu enfermeiro que o guiava entre os verdes choupos do manicômio, enquanto o mar clamava amargamente e os pássaros lutavam entre si na espádua agonizante da tarde...

Jorge Henrique Bastos (trad.) é poeta, tradutor,
atualmente morando em Lisboa, Portugal,
onde é colaborador do semanário Expresso.
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