Um
cidadão de terno cinzento
Los poetas no tienem biografia. Su obra es su biografia. Assim
o poeta mexicano Octavio Paz abre seu conhecido ensaio sobre Fernando
Pessoa. A afirmação é também perfeitamente aplicável ao americano
Wallace Stevens. O crítico Gabriel Josipovici, autor de um livro intitulado
The Lesson of Modernism, que traz também um ensaio sobre Pessoa,
deveria ter incluído Stevens naquela estirpe de cidadãos de
terno cinzento responsáveis por alguns monumentos da literatura
moderna. Homens como Konstantinos Kaváfis, Franz Kafka, T. S. Eliot,
Fernando Pessoa e Jorge Luis Borges. Tirante o fato de cada um dos
cinco citados por Josipovici ter sua obra intimamente ligada à cidade
onde viveu ou vive - Alexandria, Praga, Londres, Lisboa, Buenos Aires
-, as outras características enumeradas pelo ensaísta são compartilhadas
por Stevens:
Todos os cinco, homens de grande cortesia e
grande reserva; homens solitários, com poucos amigos chegados, embora
muitos conhecidos, sem famílias, embora com sua cota moderada de esposas,
namoradas e amantes; homens, profundamente conscientes das tradições
depositadas nas pedras das cidades por onde caminham, embora talvez
apenas porque em seu ossos se sintam inteiramente distantes de qualquer
tradição, e mesmo da própria história; homens cuja vida não contém
nada de dramático ou extraordinário, e que claramente escolheram essa
existência de forma consciente e deliberada... São os verdadeiros
revolucionários de nossa época. Embora falassem discretamente, fizessem
pouco ou nenhum esforço para publicar, fossem todos, à exceção de
Eliot, desconhecidos do grande público até bem depois de terem escrito
seus melhores trabalhos, foram eles que renovaram a linguagem e nos
mostraram um caminho adiante. ;Mas como ser
o
poeta de Hartford, Connecticut, cidade onde Stevens viveu a maior
parte de sua vida adulta, trabalhando para uma companhia de seguros
da qual se tornaria vice-presidente aos 55 anos? Ao contrário de outros
poetas americanos de sua geração, que, ou se exilaram na Europa, como
Eliot ou Pound, ou, como Williams, Frost ou Cummings, lá passaram
ao menos algum período de suas vidas, Stevens jamais pôs os pés naquele
continente. Sua biografia pode ser resumida em algumas poucas datas:
1879, nascimento em Reading, Pensilvânia; 1897 - 1900, estudos na
Universidade de Harvard; 1903, diploma em advocacia pela New York
Law School; 1909, casamento; 1923, nascimento da filha única Holly
e publicação do primeiro livro, Harmonium. Na verdade,
só com a publicação dos Collected Poems em 1954, contemplado
com o National Book Award, é que a poesia de Stevens começa a ser
conhecida fora dos círculos especializados, e ele se torna, para alguns
(entre os quais o autor deste artiguinho), o maior poeta norte-americano
da primeira metade do século. Ainda assim, há a história de um colega
de Stevens, como ele um executivo de seguros que trabalha para a Hartford
Accident and Indemnity Company. Os dois trocaram alguma correspondência
e, depois de morto o poeta, um estudioso de literatura foi procurá-lo,
sugerindo-lhe que as cartas eram valiosas. As cartas de Wally,
valiosas?, retrucou incrédulo. O outro lhe disse que Stevens
era um homem importante. Wally, importante?, espantou-se
o executivo. E, quando o estudioso pacientemente externou sua opinião
de que Stevens era um senhor poeta: Wally! Poesia?
p;Poesia, pois é, poesia. Poesia do calcanhar à garganta, comandada
por uma inteligência irônica às vezes, às vezes solene, mas sempre
luminosa. Harmonium é um primeiro livro que boa parte dos poetas
morre sem sequer igualar. Comparável, neste século, como primeiro
livro de poesia, a bem poucos um Ossi di Seppia, do
italiano Eugenio Montale, entre eles. É verdade que Stevens o publicou
aos 44 anos. E que mais ou menos a metade dos Collected Poems foi
composta nos últimos treze anos de vida do poeta, de 1942 a 1955.
Assim, a poesia de Stevens, como a de Kaváfis, é a poesia de
um homem maduro, o que nem sempre quer dizer uma poesia acompanhada
de uma reflexão amadurecida sobre o fazer poético, mas, nestes dois
casos, quer. No entanto, aquilo para que a ausência de pressa em publicar
aponta, nesses dois e em outros, é o drama do poeta moderno, para
quem a poesia deixa de ser mero exercício retórico ou mera confissão
para se transformar num problema a ser sempre reequacionado. Problema
tão visceral que, como disse Paz, a biografia se apaga ou passa a
ser a obra. O poeta moderno, ao contrário de um Camões, de um Cyrano
de Bergerac ou de um Byron, é o anti-herói por excelência. De um modo
que não acontecia com aqueles, quando a biografia ganha importância,
a poesia acaba. Rimbaud é o exemplo típico. Harmonium
é, pois, um primeiro-livro serôdio. E é bastante folhear os Collected
Poems (que se abrem com aquele livro), do primeiro ao último poema,
para se perceber esta obra como um todo harmônico. Não é à toa que
Stevens, num primeiro momento, pensou em intitular o volume de 1954
The Whole of Harmonium. O que não significa que não haja evolução,
conflitos, diferenças ou mesmo altos e baixos. O vocabulário precioso
e a retórica luxuriante do primeiro livro, por exemplo, serão polidos
nos posteriores, embora nunca venham a perder uma espécie de brilho
peculiar (Stevens, aliás, é um perfeito artesão: do ritmo, do verso,
da palavra). Há um movimento nos Collected Poems que alguém
definiu como o que vai da poesia concreta, sensorial, meridiana de
Harmonium, à poesia abstrata, meditativa, outonal de The
Rock, seu último volume. Mas o que dá a essa obra uma unidade
fundamental é o tema ou problema que ela obsessivamente persegue:
o embate entre imaginação e realidade. É uma relação nuançada demais
para ser aqui resumida, em que às vezes um, às vezes outro desses
dois pólos leva a vantagem, até que, nos últimos poemas, uma espécie
de conciliação parece ter sido atingida, como no belíssimo poema-síntese
que é Notes Toward a Supreme Fiction. É isso que
torna possível ler o conjunto dos poemas de Stevens como uma espécie
de autobiografia espiritual, nos moldes do maior edifício poético
do Romantismo, The Prelude, que o próprio Wordsworth classificou
de growth of a poets mind. Esse
tema, ou embate, insistente (o subtítulo de seu volume de ensaios,
The Necessary Angel, é, sintomaticamente, Essays on Reality
and the Imagination) fez com que Stevens fosse tachado de poeta-filósofo,
e o poeta e ensaísta Randall Jarrell, num ensaio notável pela incompreensão
da poesia do outro, disse que o hábito de filosofar em poesia lhe
foi prejudicial. Bem mais perceptivo é o inglês A. Alvarez: Stevens
é um poeta filosófico apenas num estilo especificamente moderno: acredita
na necessidade de coerência e talvez lhe -agradasse chegar a alguma
espécie de finalidade, não fosse o fato de que mal acredita sequer
na própria filosofia.
Um poeta, então, esse Wally. E um poeta obsessivo - uma espécie de
João Gilberto da poesia, digamos. Sob esse aspecto, nosso poeta mais
próximo dele é um outro João, o pernambucano Cabral. Um crítico falou
da imensa teimosia de Stevens, sua insistência em seguir seu
próprio caminho, intensamente preocupado apenas com aquilo que o preocupava.
JOÃO
MOURA JR. é poeta e jornalista,
(matéria publicada em jan/1984 no suplemento
da Folha de São Paulo, intitulado Folhetim.)
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