AS ELEGIAS
DE DUÍNO "PRIMEIRA CARTA" "As Elegia s de Duíno, de Rilke, constituem não só uma das mais importantes obras da literatura alemã da primeira metade do século XX, como também uma das poéticas mais significativas do nosso tempo. Iniciadas em 1912, no castelo de Duíno, perto de Trieste, Rilke só as terminou dez anos depois, em Fevereiro de 1922, na Suíça, quase simultaneamente com a criação de uma outra obra, "Os Sonetos a Orfeu". Em Duíno, o poeta escrevera a I , a II, parte da III e os primeiros versos da X elegia. Nos longos anos que se seguiram ao primeiro impulso criador, ele conseguiu apenas concluir a III (Paris, 1912), escrever a IV (Munique, 1915) e partes da VI e IX, estas últimas por ocasião de sua viagem à Espanha, entre 1912 e 1913. E em fevereiro de 1922, no castelo de Muzot, posto a sua disposição por um amigo - Walter Reinhart - Rilke terminou então as Elegias, escrevendo os poemas que ainda faltavam, isto é, parte da VI, a VII, a VIII, parte da IX, grande parte da X, e mais uma, a última, que viria a ser a V. Ainda que várias circunstâncias tivessem concorrido para retardar a conclusão desse longo poema, onde se encontra visão poética e trágica de um mundo que desaparece, essa demora foi em grande parte motivada - segundo testemunho de Maurice Betz - pela preocupação do poeta em lhe dar a necessária unidade. Oculta para quem a procure numa continuação por assim dizer linear, de um poema a outro, ela se revela entretanto pelo sentido comum que os poemas possuem. "A unidade é poética, não filosófica" disse Bowra.(...). Embora se possa dizer que as dificuldades da linguagem poética de Rilke sejam devidas à circunstância de ser ele o poeta de um tempo que não sabe pensar poeticamente, como disse Butler, não é menos certo que a dificuldade principal decorre de fatores inerentes à própria obra, entre os quais uma certa ambigüidade voluntária e mesmo procurada. Tudo isso concorre para que as elegias se coloquem, como já salientou Romano Guardini, entre os textos mais difíceis da literatura alemã. As Elegias de Duíno, condensam por assim dizer uma riquíssima experiência poética e existencial, e estão de tal modo ligadas a episódios e experiências da própria vida do poeta que, por vezes, só o conhecimento desses fatos pode lançar luz sobre certas obscuridades. As igrejas que Rilke visitou em Roma e em Nápoles, a sua longa experiência de Paris, aqueles amantes que ele encontrou, absortos em seu amor, no cais do Sena, os saltimbancos que ele viu no Luxemburgo, o cordoeiro que ele conheceu em Roma, e cujo trabalho lhe pareceu a repetição de um dos "gestos mais antigos da humanidade", o oleiro à beira do Nilo, reminiscências de sua viagem à Espanha, tudo isso se acha contido, embora às vezes transfigurado pelo ato poético, nas Elegias de Duíno. Escritas, como foram, sob a pressão de uma força que ao poeta pareceu de origem sobrenatural, como ele mesmo relatou em carta a Marie von Thurn und Taxis e Lou Andreas Salomé, as elegias mostram, em inúmeros trechos, a preocupação absorvente e exclusiva de Rilke em transmitir a sua mensagem, o seu descobrimento, embora para isso tivesse de forçar, como forçou por vezes na V elegia, a lógica da linguagem e, em certos versos, a própria estrutura da língua alemã. A dificuldade lingüística das Elegia de Duíno reside muitas vezes, porém, no fato de que a mensagem traduzida por elas atinge, não raramente, os limites do dizível poético na forma espantosamente direta em que está vazada. O tema central das Elegias é o mistério do homem e de seu destino num mundo que desaparece. Ao redor, porém, desse tema central alguns temas secundários formam a estrutura do poema. E o primeiro objetivo de uma interpretação deve consistir na revelação desses temas secundários, na manifestação do que eles encobrem e pressupõem. Entre estes o tema do anjo é o que aparece em primeiro lugar. Encontramo-lo já no primeiro verso da I, e ele volta a aparecer nas II, IV, V, VII, e X elegias. O anjo é aquele que, como notou E. Schmuidt-Pauli, representa nas elegias uma realidade espiritual superior.(...) Aos problemas que nos foram revelados através dos temas precedentes (o anjo, os amantes, a boneca, os saltimbancos, o herói e o animal), Rilke opõe afinal o tema da metamorfose. Através dela o poeta encontrou para si o caminho que Malte buscara inutilmente: o da confirmação de que a vida é enfim possível. Preso ao cotidiano, e mais inseguro do que o animal (I e VIII); incapaz de se realizar no amor que , todavia, num momento lhe parecera oferecer quase a eternidade, e condenado ao perecimento incessante de seu próprio ser, como um cheiro que se exala e se perde; nem anjo nem Boneca, nem real nem ator, com a sua máscara cheia (IV); e ainda como os Saltimbancos da V elegia, que nos dão uma ilusão de realidade, mas não a realidade mesma, o poeta, que como aquele Malte Laurids Brigge ficara na "superfície da vida", descobre na metamorfose, através da qual o heróis já se realizara, o segredo do seu destino. "Amada, em parte alguma o mundo existirá senão em nós" Com razão disse Schmidt-Pauli que neste verso está a chave das Elegias. Só interiormente, o mundo das coisas efêmeras e perecíveis, que é o nosso mundo, continuará a existir. O que "cai e desaparece" aos nossos olhos continua a existir no coração do poeta."Nós somos as abelhas do invisível". Nous butinons éperdument le miel du visible pour l'accumuler dans la grande rûche d'or de l'invisible, disse Rilke na sua famosa carta a Hulewicz. Nessa transformação do visível, que é o mundo dos olhos, no invisível que se acumula, transfigurado e salvo, em nosso coração, está a essência da metamorfose. E nisso está o orfismo rilkeano: a poesia como instrumento para outro fim que não o puramente estético. A partir de 1910, a poesia de Rilke inicia aquilo que o poeta chamou "a obra do coração". Para trás, Rilke deixava, ultrapassada e superada, a "obra do olhar", sobre cuja formação o escultor Rodin sobretudo exercera uma influência tão grande. Desse período são as "Ding-Gedicht"; a esse período ainda pertence o "Malte Laurids Brigge", onde já se pressentem todavia sinais de uma novo rumo. Superada, porém, a fase precedente, que parece corresponder a uma etapa necessária em toda evolução poética, Rilke inicia, celebrando com um poema intitulado "Wendung", a obra do coração". As Elegias representam a obra culminante realizada pelo poeta nessa segunda fase da sua evolução. Nela está condensada toda a sua experiência artística e humana, os dramas de sua vida, o problema do amor e a concepção da vida e da morte como um todo inseparável no tempo, dentro do qual existimos ou deixamos de existir. Nas elegias, a forma adotada pelo poeta difere sensivelmente daquela em que foram escritas as suas obras anteriores. Sem rima e sem métrica, em verso livre (com exceção da quarta e da oitava que estão escritas no equivalente alemão do "blank verse" inglês, como observou C.M. Bowra, no seu estudo sobre tradição simbolista) as Elegias antecipam, por assim dizer, a seqüência psicológica que T. S. Eliot usou em "Waste Land". Poeta
fundamental, Rilke é a voz de uma época em transição. Talvez seja a
última voz do seu tempo, aquela que anunciou o "fim dos tempos modernos",
como quer Romano Guardini, e ao mesmo tempo a primeira voz e o primeiro
poeta dessa nova era que estamos começando a viver. * PRIMEIRA ELEGIA Quem
se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens De
obscuro soluço. Ah! A quem podemos Sim,
as primaveras precisavam de ti.Muitas estrelas Vozes,
vozes.Escuta, coração como outrora somente Certo,
é estranho não habitar mais terra, Finalmente
não precisam mais de nós os que partiram cedo,
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