Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, em 13 de julho de 1888 (dia de Santo Antônio, padroeiro da cidade). Mas pouco tempo depois, quando ainda tinha cinco anos, seu pai morre. Anos depois, sua mãe se casa com um oficial da Marinha, o comandante João Miguel Rosa, que logo é designado para cônsul de Portugal em Durban. Esses acontecimentos vão marcar profundamente a vida do poeta. Ele vive, como diz seu biografo, uma espécie de "afastamento" da mãe. "O que interessaria saber e o papel desse traumatismo afetivo, aos sete anos, no bloqueio da consciência que mais tarde lhe conferira a obra a tonalidade própria: abstração dos sentimentos e das sensações, plenitude vazia, ausência de si e do mundo, estética do apagamento e da brancura etc." O que também conta nesse episódio são os seus anos de formação em Durban, na África do Sul, que era, na época, uma cidade inglesa. Pessoa permaneceu em Durban de 1896 a 1904 (nesse entretempo, permaneceu um ano em Lisboa). Logo o jovem Fernando passa a ser bilíngüe, escrevendo basicamente em inglês. Boa parte de sua referencia literária acaba sendo inglesa. Nasce nessa época o seu segundo heterônimo. O primeiro, ainda aos seis anos, tinha sido Chevalier de Pas, uma francês com quem se correspondia; o segundo e Alexander Search due, de acordo com Brechon, será o precursor de todos os outros: "Ao lermos esses textos em verso e em prosa, todos evidentemente escritos em inglês, apercebemo-nos de que Pessoa, dos quinze aos vinte anos, situou na consciência semifictícia de Search e na sua obra, bem real, a experiência espiritual tempestuosa vivida nessa `curva da estrada' da sua vida de homem, essa luta com o Anjo cujo duplo (Alexander Search) sai por fim vencido, para que ele mesmo, Pessoa, possa extrair sua satisfação e transpor um limiar, passar a outra etapa da iniciação poética." Esse ritual de iniciação poética o prepara para seus grandes heterônimos: Alberto Caeiro, Alvaro de Campos, Ricardo Reis e Bernardo Soares, do Livro do desassossego (livro que contem a escritura de uma vida, pois Pessoa nunca o concluiu, ja que ia escrevendo-o como quem escreve um diário). Essa coterie, como chamava Pessoa, surge quase que de uma tacada só, no famoso "dia triunfal", ou seja, 8 de março de 1914, quando "nasce", numa noite, a obra de Alberto Caeiro. Em poucos anos, ele terá escrito 0 essencial do Guardador de rebanhos, grande parte das Odes de Reis e muitas das grandes Odes de Campos. Pode-se dizer que a partir desse momento o projeto de Pessoa ganha corpo. Desde sua chegada definitiva a Portugal, em 1905, o poeta foi aos poucos se interessando pela vida portuguesa, embrenhando-se nas questões históricas e políticas (assunto que o perseguira durante toda sua vida) e readquirindo sua língua de origem para se tornar o segundo grande poeta da língua depois de Camões. Em 1915, prepara com seus amigos Mario de Sá-Carneiro e Almada Negreiros a revista Orpheu, que marca o início do modernismo português. Paralelamente as atividades literárias, vai tocando seu trabalho de correspondente comercial em línguas estrangeiras, já que domina tanto o inglês quanto o francês. Seu apego ao país reencontrado se dá com grande força por meio da reconquista da língua. Deixou esboçado alguns projetos como um tratato intitulado Defesa e ilustração da língua portuguesa, um Dicionário ortográfico, prosódico e etimológico da língua portuguesa, além de fragmentos sobre ortografia, sobre língua falada e escrita. A certa altura de sua vida, quando se volta ao "sebastianismo" e a concepção profética do "Quinto Império", Pessoa acredita que Portugal, com a língua portuguesa, será um dos pilares do mundo. E de suas pesquisas e leituras, como a que fez de padre António Vieira, que vira a famosa frase, hoje repetida ate numa canção de Caetano Veloso, "minha pátria e minha língua". Esse mergulho lingüístico vem acompanhado de uma rigorosa releitura da literatura portuguesa. Procura, então, uma unidade dentro dessa literatura, lendo Camões, Garret, Antero de Quental, Antonio Nobre e Guerra Junqueiro. Mas acabou recebendo influências marcantes, na juventude, de poetas como Cesário Verde e Teixeira Pascoaes. Outro foco de suas preocupações e a política. Brechon salienta que Pessoa, desde sua volta definitiva a Lisboa, teve um "interesse simultaneamente divertido e apaixonado" pela política portuguesa. Como muito de sua obra, escreveu milhares de paginas destinadas a livros que nunca acabou como Da ditadura a república, Considerações post-revolucionárias, República e monarquia. Quando da queda da monarquia em 1910, ainda não tinha a visão nítida e exaltada que terá depois. Varias vezes voltou ao tema, tentando compreender esse período histórico. Portugal passara por um momento conturbado após a instalação da República, passando por varias agitações internas, greves, uma sucessão de governos. Para Brechon, "não há dúvida de que ele participou dessa espécie de psicose coletiva que e a espera irracional de um Salvador. Julgou tê-lo encontrado, em 1917, em Sidônio Pais". Mas esse D. Sebastião logo será assassinado. Foram mais alguns períodos de agitação e novas tendências de ditadura até que o pro£ Oliveira Salazar "impõe, em varias etapas, seu poder absoluto: superministro das Finanças em 1928, presidente do Conselho em 1932, fundador em 1933 do Estado Novo, inspirado no modelo fascista". E Pessoa, nesse imbroglio político, que posições vai tomar? Como lembra Brechon, será sempre controverso: foi da expectativa benevolente a oposição irredutível. Aqui, Brechon lembra de um episodio que marcou seu último ano de vida. Em 1935, ele publica um "violento" panfleto contra a proposta de um deputado salazarista de proibir as sociedades secretas. Nesse documento, Pessoa toma a defesa da Franco-Maçonaria. É violentamente atacado pela imprensa e, assim, rompe com o salazarismo. Ainda antes de morrer, escreve sobre si mesmo: "conservador do estilo inglês, isso e, liberal dentro do conservadorismo, e absolutamente antireacionário". A vida amorosa do poeta também merece mais de um capitulo de Brechon. Não que ele tenha tido de fato urna vida amorosa. Pessoa era um homem tímido, mais para o calado do que para o conquistador, e esse capítulo, dentro de sua vida, foi um fiasco. Enamorou-se da jovem Ofélia Queiroz, que conhecera como estagiaria em um dos escritórios em que trabalhava. Passou a freqüentar assiduamente o lugar e lhe fazia gracejos. Acabaram por desenvolver uma correspondência da qual temos hoje somente as cartas do poeta - e são ridículas, como Álvaro de Campos escreveria depois, sem culpa. E é curioso notar, na biografia de Brechon, como Álvaro de Campos acabou sendo o grande vilão dessa história. Às vezes, conta a própria Ofélia, Pessoa apresentava-se diante dela como sendo Álvaro de Campos. "Portava-se, nessas alturas, de uma maneira totalmente diferente. Destrambelhava-se, dizendo coisas sem nexo." Numa de suas crises resolve acabar com essa aventura. "O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e esta subordinado cada vez mais a obediência a Mestres que nao permitem nem perdoam", escreveu. Depois desse rompimento, houve uma recaída, muitos anos depois, mas também infrutífera. Como diz Brechon, "o amor e a poesia não convivem no mesmo espaço nem no mesmo tempo. Pessoa escolheu: não o amor, mas a poesia". A leitura das 500 páginas desse livro dá a impressão de uma estranha vida em exílio, onde não houve espaço para a afetividade, onde muito se fez em frustração do homem. Na juventude, ele quis ser um poeta inglês, mas seu destino tinha de ser português. E não só: graças a ele, Lisboa tornou-se uma cidade literariamente tão importante quanto Paris. Criou um mundo ao mesmo tempo ligado às questões políticas e sociais do seu tempo e distante da vida social (não que fosse um eremita, ia aos bares, mas preferia sempre ficar calado e observando). Habitou e foi habitado por seus heterônimos, criando, assim como Sexta-b'eira foi o outro para Robinson Crusoé em sua Ilha da Desolação, um estranho dialogo ficcional e real entre seus poetas (alguns críticos chegaram a contabilizar setenta e dois heterônimos). Para Pessoa, parece que os fatos do mundo exterior serviram de matéria para a criação de uma identidade difícil de ser encontrada e que deixou na alma um exílio na alma, aquele exílio no meio da multidão, em que se tenta captar o sentido de tudo, como se tudo não fizesse sentido ou fosse um sonho. Heitor
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