A gramática cruel de Herberto Helder O poeta nascido na Ilha da Madeira realizou uma desarticulação de toda a tradição da poesia portuguesa, substituindo a dispersão da escrita surrealista por uma voz encantatória que ocupa hoje um lugar central na literatura de seu país. Em Portugal, a exemplo das gerações surgidas na época das revistas Orpheu, a década de 60 transformou-se no núcleo disseminador da modernidade que viria a intensificar o rumo tomado pela poesia produzida naquele país. Tal década foi particularmente importante, tanto no aspecto político-cultural como no literário. Os fragores do neo-realismo continuavam a provocar ciladas e os herdeiros do surrealismo aprimoravam suas vozes. O agrupamento conhecido como Poesia 61 também despontara aí, defendia a sua independência e opunha-se à tendência torrencial dos surrealistas. Estas gerações devem muito às antecessoras, a contenda serena entre tais grupos só beneficiou os poetas mais novos. Antecipando o período de 60, e ao mesmo tempo acompanhando-o, Herberto Helder conquistara o seu lugar e garantira a sua autonomia. A sua poesia, que já foi traduzida para o francês e para o italiano, é o exemplo da pesquisa contínua. Nascido no Funchal, Ilha da Madeira, em 1930, freqüentou o grupo do café Gelo, onde se reuniam Mário Cesariny, Antônio José Forte, João Vieira entre outros. A publicação do primeiro livro, O Amor em Visita, dar-se-ia em 1958; três anos depois lança A Colher na Boca e Poemacto. A partir deste ponto, Herberto Helder construirá uma poética fascinante, dando início à desarticulação de toda a tradição da poesia portuguesa. Embora esteja ligado ao surrealismo por desígnios meramente geracionais, a sua poesia demonstra que o caminho seguido distancia-se gradualmente dos postulados, ocupando vias transversais de atuação e aprofundamento. Ao afastar-se desta linha, o poeta norteia-se pela propulsão metafórica trabalhada simultaneamente com a minúcia da pesquisa e do estilhaçamento estilístico. A dispersão da escrita surrealista é substituída por uma voz encantatória. A fruição verbal atinge o equilíbrio, mas o substrato que a mantém rege-se pelo ritmo turbulento e a opacidade concentrada: "E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua estiola,/ a paisagem regressa ao ventre, o tempo/ se desfibra - invento para ti a música, a loucura do mar". Ciente da polifonia articulada, a gnose poética assume a animalidade concreta e a normalidade animal, secundando-a pela "retórica profunda" que exigia Baudelaire. A "inspiração tulmutuosa; (expressão de Maria Estela Guedes no livro H.H., poeta obscuro) do poeta deixa-se envolver por um movimento quase orgânico: "No entanto és tu que te moverás na matéria/ da minha boca, e serás uma árvore dormindo e acordando onde existe o meu sangue". O sistema verbal desta poesia traceja uma órbita ascensional, volume, espaço e tempo são descompostos pela espessura da linguagem. Não existe tempo ou espaço para a criança, a mãe, e a mulher, não há formas ou marcas, estão à deriva no não-tempo, tão voláteis como objetos indecifráveis: "As crianças enlouquecem com coisas de poesia./ Escutai um instante como ficam presas/ no alto deste grito, como a eternidade as acolhe/ enquanto gritam e gritam". Mãe, criança e linguagem formam uma tríade incestuosa que o poeta representa e traduz numa poesia que fala sobretudo no feminino. A representação nasce envolta no erotismo violento, espelhando o envolvimento entre corpo, espírito e objeto, e moldada na fulgurância platônica de onde esta poesia emerge: "As mulheres de ofício cantante que a Deus mostram a boca e o ânus/ e a mão vermelha lavrada sobre o sexo". A poesia é o sopro divino, a pronúncia da palavra primeva, a suspensão do pneuma universal: "- como se diz: pneuma,/ terrífica é a terra e no entanto nada mais do que um pouco: criar matérias -/ e depois, a nossos pés, constelações (...) faz um segredo, isso: caldeia/ os artefactos;/ ouro que transborda,/ e o mundo". A sua inegável capacidade de transmutar a matéria verbal projeta a linguagem na dança vertiginosa dos ritmos, absorve sentidos, as ressonâncias; as cifras do poeta aceleram o movimento que ondeia em direção à substância visceral da língua. O poeta capta as palavras através da lucidez dolorosa, desestruturando o teor funcional, despertando-lhes o sentido primigênio: "Que se coma o idioma bárbaro, palpitação da lêveda/ substância dos vocábulos:/ no prato. Eu devoro. Às vezes eletrocutado, uma ígnea linha escrita/ para dizer o abastecimento de estrelas/ em cal escaldando, da poesia". Ele torneia a linguagem como se eletrificasse as palavras entre si: "Não sabes onde um cometa se despenha como/ se um rio de quartzo por trás de tudo quebrado a meio do escuro,/ deslumbrando por ali abaixo./ O teu espaço, clarão a página inteira". Os limites desta poética estão minados, ela torna-se compacta ao acumular a energia do deslocamento metonímico e da gravitação metafórica. Herberto Helder impulsiona a viva encantação das palavras, o abalo que a sua poesia provoca é um dos mais profundos que a literatura de língua portuguesa já sofreu. Poeta que reescreve sem cessar, é criador/destruidor de uma gramática peculiaríssima. A transgressão regula a pontuação, os padrões são sujeitos à sua consciente desorganização, o fluxo orgânico se alastra animalizando o poema: "E dentro de mim, rompendo peixes,/ uma noite sensível cor de martelos./ Esse grito, essa vírgula, esse amor, esse/ martelo louco (...) Gritando, cor de martelo, em peixes/ com som de rosas:// Castiçal, silveira, linho - e:// porta porta". A irredutibilidade desta poesia
converge para a aglutinação total, transgredindo os cânones da
tradição e
ultrapassando as fronteiras. Poesia decisiva e órfã, a insubmissão de
Herberto Helder é única. Poeta sábio e lúcido, a sua obra faz-se
distante
das luzes dos acontecimentos, sob a égide da "solidão
essencial" proclamada
Jorge
Henrique Bastos é poeta,
brasileiro |
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