CHUVA
A chuva, no pátio em que a olho cair, desce em andamentos
muito diversos. No centro, é uma fina cortina (ou rede)
descontínua, uma queda implacável mas relativamente
lenta de gotas provavelmente bastante leves, uma precipitação
sempiterna sem vigor, uma fração intensa do meteoro
puro. A pouca distância das paredes da direita e da esquerda
caem com mais ruído gotas mais pesadas, individuadas. Aqui
parecem do tamanho de um grão de trigo, lá de uma
ervilha, adiante quase de uma bola de gude. Sobre o rebordo, sobre
o parapeito da janela a chuva corre horizontalmente ao passo que
na face inferior dos mesmos obstáculos ela se suspende
em balas convexas. Seguindo toda a superfície de um pequeno
teto de zinco abarcado pelo olhar, ela corre em camada muito fina,
ondeada por causa de correntes muito variadas devido a imperceptíveis
ondulações e bossas da cobertura. Da calha contígua
onde escoa com a contenção de um riacho fundo sem
grande declive, cai de repente em um filete perfeitamente vertical,
grosseiramente entrançado, até o solo, onde se rompe
e espirra em agulhetas brilhantes.
Cada uma de suas formas tem um andamento particular; a cada uma
corresponde um ruído particular. O todo vive com intensidade,
como um mecanismo complicado, tão preciso quanto casual,
como uma relojoaria cuja mola é o peso de uma dada massa
de vapor em precipitação.
O repique no solo dos filetes verticais, o gluglu das calhas,
as minúsculas batidas de gongo se multiplicam e ressoam
ao mesmo tempo em um concerto sem monotonia, não sem delicadeza.
Quando a mola se distende, certas engrenagens por algum tempo
continuam a funcionar, cada vez mais lentamente, depois toda a
maquinaria pára. Então, se o sol reaparece, tudo
logo se desfaz, o brilhante aparelho evapora: choveu.
(Trad:
Júlio
Castañon Guimarães)
O
ENGRADADO
A
meio caminho de engraçado e degradado a língua portuguesa
possui engradado, simples caixote de ripas espaçadas fadado
ao transporte desses frutos que, com a mínima sufocação,
adquirem fatalmente uma moléstia.
Armado
de maneira que no termo de seu uso possa ser quebrado sem esforço,
não serve duas vezes. Desse modo, dura menos ainda que
os gêneros fundentes ou nebulosos que encerra.
Assim,
em todas as esquinas das ruas que levam aos mercados, reluz com
o brilho sem vaidade do pinho branco. Novinho em folha ainda,
e um tanto aturdido por se encontrar numa pose desajeitada na
via pública jogado fora sem retorno, esse objeto é,
em suma, dos mais simpáticos - sobre a sorte do qual, todavia,
convém não repisar muito.
(Trad:
Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria)
A
OSTRA
A
ostra, do tamanho de um seixo mediano, tem uma aparência
mais rugosa, uma cor menos uniforme, brilhantemente esbranquiçada.
É um mundo recalcitrantemente fechado. Entretanto, pode-se
abri-lo: é preciso então agarrá-la com um
pano de prato, usar de uma faca pouco cortante, denteada, fazer
várias tentativas. Os dedos curiosos ficam trinchados,
as unhas se quebram: é um trabalho grosseiro. Os golpes
que lhe são desferidos marcam de círculos brancos
seu invólucro, como halos.
No
interior encontra-se todo um mundo, de comer e de beber: sob um
"firmamento" (propriamente falando) de madrepérola,
os céus de cima se encurvam sobre os céus de baixo,
para formar nada mais que um charco, um sachê viscoso e
verdejante, que flui e reflui para a vista e o olfato, com franjas
de renda negra nas bordas.
Por
vezes mui raro uma fórmula peroliza em sua goela nácar,
e alguém encontra logo com que se adornar.
(Trad:
Ignácio Antonio Neis e Michel Peterson)
OS
PRAZERES DA PORTA
Os
reis não tocam nas portas.
Não
conhecem essa ventura: fazer avançar docemente ou com rudeza
um desses grandes painéis familiares, voltar-se em sua
direção para recolocá-lo no lugar - ter nos
braços uma porta.
...
A ventura de empunhar no ventre pelo nó de porcelana um
desses altos obstáculos de um cômodo; o corpo-a-corpo
rápido pelo qual por um instante o passo se detém,
o olho se abre e o corpo inteiro se acomoda ao seu novo aposento.
Com
a mão amiga retém ainda, antes de empurrá-la
decididamente e encerrar-se - o que o estalido da mola potente
mas bem azeitada agradavelmente lhe assegura.
(Trad:
Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria)
O
FOGO
O fogo estabelece uma classificação: primeiro, todas
as chamas se encaminham em uma direção...
(Só
se pode comparar a andadura do fogo à dos animais: é
preciso que desocupe este lugar para ocupar aquele outro; caminha
a um só tempo como ameba e como girafa, o pescoço
à frente, os pés rampantes)...
Depois,
ao passo que as massas metodicamente contaminadas se aniquilam,
os gases liberados vão-se transformando numa só
rampa de borboletas.
(Trad: de Júlio
Castañon Guimarães)
O
PEDAÇO DE CARNE
Cada pedaço de carne é uma espécie de fábrica,
moinhos e lagares de sangue.
Tubulações, altos fornos, cubas vizinhos de martelos
pilões, coxins de graxa.
O vapor jorra, fervente. Fogos sombrios ou claros encarnam-se.
Sarjetas a céu aberto carreiam escórias e fel.
E lentamente, à noite, à morte, todas essas coisas
se resfriam.
Breve, se não a ferrugem, pelo menos outras reações
químicas se produzem, liberando odores pestilenciais.
(Trad: Júlio
Castañon Guimarãe)
O
MOLUSCO
O
molusco é um "ser-quase-uma qualidade".
Ele não necessita de vigamento, mas de um anteparo apenas,
algo como a cor no tubo.
Aqui a natureza renuncia à apresentação do
plasma em toda sua forma. Mostra apenas que lhe está apegada,
abrigando-o cuidadosamente num escrínio cuja face interior
é a mais bela.
Não é, pois, um simples escarro, mas uma realidade
das mais preciosas.
O molusco é dotado de uma energia possante para se fechar.
A bem dizer, não é mais que um músculo, um
gonzo, uma mola e sua porta. Duas portas ligeiramente côncavas
constituem toda a sua morada.
Primeira e última morada. Reside ali até depois
de sua morte.
Nada se pode fazer para tirá-lo dali vivo.
A menor célula do corpo do homem se apega assim, e com
essa força, à palavra - e reciprocamente.
Mas, às vezes, um outro ser vem violar essa tumba, quando
está bem-feita, e nela se fixar no lugar do construtor
defunto.
É o caso do paguro.
(Trad:
Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria)
O
INSIGNIFICANTE
"O que há de mais atrativo que o azul, a não
ser uma nuvem, na dócil claridade?
Por isso prefiro ao silêncio uma teoria qualquer e, mais
ainda, a uma página branca um escrito quando passa por
insignificante.
É todo meu exercício e meu suspiro higiênico."
(Trad: Júlio
Castañon Guimarães
A PAISAGEM
O horizonte, sobrelinhado com acentos vaporosos, parece escrito
em pequenos caracteres, com tinta mais ou menos pálida
segundo os jogos de luz.
Do que está mais próximo, não usufruo mais
do que como de um quadro,
Do que está ainda mais próximo, do que como de esculturas,
ou arquiteturas,
A seguir, da própria realidade das coisas a meus pés,
como de alimentos, com uma sensação de verdadeira
indigestão,
Até que finalmente em meu corpo tudo se engolfa e levanta
vôo pela cabeça, como que por chaminé que
desembocasse em pleno céu.
(Trad:
Júlio
Castañon Guimarães)
MY CREATIVE METHOD
Sidi-Madani,
quinta-feira, 18 de dezembro de 1947
Sem dúvida não sou muito inteligente: em todo caso
as idéias não são o meu forte. Sempre fui
iludido por elas. As opiniões mais bem fundamentadas, os
sistemas filosóficos mais harmoniosos (os mais bem constituídos)
sempre me pareceram absolutamente frágeis, me provocaram
uma certa repugnância, vazio na alma, uma penosa sensação
de inconsistencia. Não me sinto de modo algum seguro das
proposições que lanço durante uma discussão.
As que me são opostas parecem-me quase sempre igualmente
válidas; digamos, para sermos exatos: nem mais nem menos
válidas. Posso ser convencido, desarmado com facilidade.
E quando digo que posso ser convencido: trata-se, senão
de alguma verdade, pelo menos da fragilidade de minha própria
opinião. Além do mais, o valor das idéias
parece-me na maioria dos casos em razão inversa ao ardor
empregado para expô-las. O tom da convicção
(e mesma da sinceridade) é adotado, assim me parece, tanto
para convencer-se a si mesmo quanto para convencer o interlocutor,
e mais ainda talvez para "substituir" a convicção.
De qualquer modo, para substituir a verdade ausente das proposições
emitidas. Eis o que sinto de modo bem forte.
Assim, as idéias como tal parecem-me aquilo de que sou
menos capaz, e não me interessam mesmo. Vocês me
dirão sem dúvida que aqui há uma idéia
(uma opinião)... mas: as idéias, as opiniões
me parecem dirigidas em cada um de nós por algo que não
o livre-arbítrio ou o juízo. Nada me parece mas
subjetivo, mais epifenomenal.
Não compreendo muito que as pessoas se jactem delas. Eu
acharia insuportável que se pretendesse impô-las.
Querer apresentar sua opinião como válida objetivamente,
ou em termos absolutos, parece-me tão absurdo quanto afirmar
por exemplo que os cabelos louros cacheados são mais "verdadeiros"
que os cabelos pretos lisos, o canto do rouxinol mais perto da
verdade que o relincho do cavalo. (Em compensação
sou bastante propenso à formulação e talvez
tenha algum dom para ela. "Eis o que você quer dizer..."
e em geral obtenho daquele que falava a concordância com
a fórmula que lhe proponho. Este é um dom de escritor?
Talvez.)
Caso um pouco diferente é o do que chamarei de constatacões;
digamos, se preferirem, as idéias experimentais. Sempre
me pareceu desejável que houvesse um entendimento, senão
quanto às opiniões, pelo menos quanto a fatos bem
determinados, e se isso ainda parece muito pretensioso, pelo menos
quanto a algumas definições sólidas.
Talvez fosse natural que com tais disposições (desgosto
pelas idéias, gosto pelas definições) eu
me dedicasse ao recenseamento e à definição
em primeiro lugar dos objetos do mundo exterior e entre eles daqueles
que constituem o universo familiar dos homens de nossa sociedade,
em nossa época. E por quê, me objetarão, recomeçar
o que foi feito em várias oportunidades e bem estabelecido
nos dicionários e enciclopédias? Mas, responderei,
por que e como é que existem vários dicionários
e enciclopédias na mesma língua na mesma época
e que suas definições dos mesmos objetos não
são Idênticas? Sobretudo, como é que no caso
parece estar mais em questão a definição
das palavras que a definição de coisas? Por que
posso ter essa impressão, para dizer a verdade bastante
extravagante? Por que essa diferença, essa margem inconcebível
entre a definição de uma palavra e a descrição
da coisa que essa palavra designa?
Por que as definições dos dicionários nos
parecem tão lamentavelmente desprovidas de concreto e as
descrições (dos romances ou poemas, por exemplo)
tão incompletas (ou muito particulares e detalhadas, ao
contrário), tão arbitrárias, tão temerárias?
Não poderíamos imaginar uma espécie de escritos
(novos) que, situando-se mais ou menos entre os dois gêneros
(definição e descrição), tomariam
emprestados do primeiro sua infalibilidade, sua indubitabilidade,
sua brevidade também, do segundo seu respeito pelo aspecto
sensorial das coisas...
(
Trad: Júlio
Castañon Guimarães)
APOCALIPSES
1
Com a aurora a ressumar, este sinal: em minha janela, uma árvore
nua.
2
Um grito esquartejou a aurora.
Ao homem que retomara o espelho, pareceu-lhe que uma nova noite
o invadia.
Suplicava que lhe fosse poupada essa insustentável evidência.
(Trad: Júlio
Castañon Guimarães
A
SONHADORA MATÉRIA
Provavelmente tudo e todos - e nós mesmos - não
sejamos mais que sonhos imediatos da divina Matéria:
Produtos textuais de sua prodigiosa imaginação.
E assim, em certo sentido, poderíamos dizer que toda a
natureza, inclusive os homens, nada mais é que uma escritura;
mas certo tipo de escritura; escritura "não-significativa",
já que não se refere a sistema algum de significação;
já que se trata de um universo indefinido: falando claramente,
"imenso", sem medidas.
Ao passo que o mundo das palavras constitui um universo finito.
No entanto, já que composto por esses objetos bastante
particulares e particularmente comoventes, os sons significativos
e articulados de que somos capazes, que nos servem "a um
só tempo" para nomear os objetos da natureza e exprimir
nossos sentimentos,
Sem dúvida basta "nomear" não importa
o quê - de um determinado modo - para exprimir tudo do homem
e, ao mesmo tempo, glorificar a matéria, exemplo para a
escritura e providência do espírito.
(
Trad: Júlio
Castañon Guimarães)
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