A
Chamou-a Utopia, palavra grega cujo significado é
não existe tal lugar .
[
Quevedo, século XVII ]
É
um jogo. De espelhos. Os mapas, objetos de admiração e sonho,
cheios de minúcias e de fantasias sobre lugares a serem alcançados.
Mapas de um desenho que é técnica e é arte num tempo em que arte
e técnica não se distinguem. Os espelhos refletem, no entanto,
o inverso. O não- lugar, o que não existe, a Utopia.
É
neste território indefinido entre a precisão do lugar e o lugar
inexistente que se situa o trabalho mais recente de Jorge Eiró.
O suporte das obras é o mapa, nos desenhos do século XVIII, a
memória mais remota da cidade, traçada com instrumentos precisos
que perderam-se no tempo mas cujo brilho e desenho ainda nos fascinam.
Escolher Belém como ponto de partida é tentar reunir o que a Amazônia
representava para o europeu no ato de ser cartógrafo de um Novo
Mundo, à busca de mapas íntimos e pessoais que só o lugar ao qual
pertencemos nos dá.
O mapa do século XVIII, o Século das Luzes, da exatidão, já não
é mais o do Paraíso/Inferno a ser descoberto. Já não contém monstros
e índios canibais, aves e animais exóticos, como aparecem nos
desenhos de séculos anteriores, também usados por Eiró. A exatidão
dos desenhos desse século iluminado, quando Belém começa a existir
enquanto representação de si mesma, não exclui a beleza mas já
reprime a fantasia. Os mapas são técnica e são também arte, ainda
que essencialmente a arte de representar uma imagem a ser divulgada
junto ao conquistador. Como escreve, em ensaio recente, Alberto
Tassinari, no mundo antigo não se separa a arte da técnica, é
só no Renascimento que começa a se estabelecer o que se tornaria,
nos nossos dias em especial, uma distinção radical entre arte
e técnica "pois a arte deixou de ser sinônimo de técnica
e o belo deixou de ser tema por excelência da arte". Ainda
segundo Tassinari, é no século XVIII que a distinção iria possibilitar
uma diferença entre artes e belas-artes que se acentua nos períodos
seguintes: "O aprofundamento da diferença nos tempos atuais
terminou por separar o mecânico, ou mais modernamente o tecnológico,
do liberal, ou também modernamente, do que não sendo sequer belo
passou a ser compreendido como artístico".
O mapa é buscado por Jorge Eiró enquanto ponto de ruptura e é
nesse suporte de técnica e de um fazer artístico que não se pensa
como tal, que Eiró insere a contemporaneidade de seus últimos
trabalhos. Reelaborando, deconstruindo os mapas ele vai diluindo
a representação gráfica do lugar até transformá-lo na sua própria
negação, o não-lugar, o território do imaginário, a Utopia da
qual nos fala Quevedo. Nessa deconstrução entram seus percursos
pessoais, e não por acaso em um dos quadros está a mão do artista
impressa sobre a tela, mapa de seu corpo e de sua poética. Ao
mesmo tempo que destrói e anula os signos do passado vai-se delineando,
na obra de Eiró, o desenho dos lugares impossíveis, dos Paraísos
Perdidos. Entram fragmentos de memórias e objetos do cotidiano,
em percursos que aproximam o que foi sendo separado, a arte da
tecnologia. É emblemático, neste sentido, o uso de um levantamento
aerofotogramétrico visto como negação do mapa, como extremo da
precisão tecnológica, transformando-o da mesma forma que aos mapas
antigos, num não-lugar.
O
conceito da obra apresentada não é o de colagem, como poderia
parecer em se tratando de um fazer artístico que deconstrói construindo,
acrescentando. O conceito ou o status da obra é fundamentalmente
o de pintura, é ela que se sobrepõe a todos os outros procedimentos.
Como se insere então o suporte dos mapas dentro de um fazer artístico
no qual predomina a pintura? Talvez se possa pedir o empréstimo
de uma definição de Tassinari ao analisar a obra de Anselm Kiefer
"A Via Láctea" (1987), "à primeira vista, uma paisagem",
diz o autor citado, mas é em síntese "uma pintura que é um
agregado de intervenções sobre o plano de uma pintura que também
mostra uma paisagem", completando em seguida "... É
mais uma nostalgia da paisagem naturalista com seus horizontes
outrora longínquos que a pintura [... ] comunica".
Não
estamos analisando, portanto, no caso de Jorge Eiró, uma pintura
de mapas, reais ou imaginários, ou de uma colagem, estabelecida
em função dos elementos agregados. Estamos diante de uma nostalgia
da imagem dos mapas, e é a inserção do mapa/técnica com a paisagem/pintura
que promove a comunicação entre o antigo e o novo, entre a lembrança
do passado e a espacialidade contemporânea.
Os
procedimentos tecnológicos de transformação dos mapas estão inseridos
em propostas globalizantes com as quais o homem do 3o milênio
se defronta na busca de novos sítios - "sítios/sites, tais
como espaços virtuais, universos paralelos, paraísos artificiais
e não lugares", diz Eiró em sua apresentação da própria obra.
A lembrança do passado é, no entanto, um dos fios condutores deste
trabalho e o seu diferencial, como já o foi em outros do mesmo
artista. A relação reelaborada entre a nostalgia da imagem e sua
negação lhe confere a contemporaneidade que o autor tem perseguido
ao longo de sua trajetória pessoal como pintor.
A
relação entre a precisão do lugar e o lugar inexistente, é a questão
de fundo, a que perpassa todas as obras desta exposição de Eiró.
O mapa é a precisão do lugar que se revela, no entanto, um lugar
inexistente porque só existe enquanto criação, imaginação de quem
o concebeu. Tomas More (1516) disse que o espaço de harmonia entre
os planos humanos e o projeto divino não pode ser criado, por
isso dá o título à sua obra de "Utopia", o lugar que
não existe. O Renascimento volta a se perguntar como os homens
podem se organizar ou ordenar seu espaço, de forma a obter esta
harmonia. Esta procura faz surgir os projetos renascentistas de
cidades ideais. Carlos Fuentes, em sua análise da conquista americana
no livro "El Espejo Enterrado", retoma a questão e diz
que a pronta resposta que a imaginação européia deu ao problema
foi: "Agora sim, existe tal lugar. Ele se chama América".
Estas seriam as terras da Utopia, o tempo feliz do homem natural,
diz Fuentes.
O
círculo se fecha, o espelho reflete o nada. A precisão dos mapas,
que tanto nos fascina, inventa lugares que se perderam antes de
serem achados. Não há riquezas, nem bons selvagens, apenas a humana
realidade. A América, a Amazônia, são invenções de perfeição que
tentamos inutilmente alcançar. A nostalgia do passado a que se
refere a pintura de Eiró é a de um passado perdido, de um paraíso
perdido. Jorge Luiz Borges, em um de seus últimos livros, "Os
Conjurados" (1985), escreveu "... sei que perdi tantas
coisas que não poderia contá-las e que estas perdas, agora, são
o que é meu. ...Só o que morreu é nosso, só é nosso o que perdemos
... Não há outros paraísos a não ser os paraísos perdidos."
Essa
noção de perda que é posse, dessa apropriação interminável do
que vamos perdendo, é que permeia os quinze trabalhos que estão
sendo apresentados em cores brilhantes e solares que interagem
no espaço expositivo, carregado de signos e significantes como
o espelho que recobre as colunas de sustentação e as transforma
em um não-lugar, pois o espelho reflete a todos objetos, ou lugares,
mas não pertence a nenhum.
Há
nos trabalhos apresentados, também, a inevitável comparação dos
mitos paradisíacos do período dos descobrimentos com os mitos
de supremacia tecnológica que dominam os nossos tempos. À expectativa
de um paraíso terrestre localizado, precisamente, em mapas e detalhado
na imaginação dos relatos escritos, segue-se a expectativa de
uma nova realidade, transformada pela tecnologia no paraíso sempre
perseguido mas jamais alcançado pelo homem. Talvez tenhamos apenas
que aceitar o que disse Borges:
Não
há outros paraísos a não ser os paraísos perdidos.
[ Borges, 1985 ]
Jussara
Derenji *
2002, Belém do Pará.
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