A
Asa e a Serpente
Minha mão esquerda está cuidando da
direita como se fossem dois irmãos
E
há aves caindo do céu e se transformando
em terra. A mão direita que ainda mata
Bem
no começo da viagem, é preciso dizer
o que contém este primeiro livro. Ele é
o relato da aparição de uma assombração
militar em Santa Maria do Grão.
Esta
viagem a Andara
E aonde mais?
Na vida.
Andara é perto e longe. Andara está
dentro de ti. E fora. E dentro de mim.
Diz a voz
Esta
voz
E agora, se vocês já estão prontos
para as febres do sangue sem esperança de
um prisioneiro da cabeça escura e das idades
do homem
Já?
Mais
tarde teremos um dia na vida do homem sem memória.
E depois, arte mecânica e revolta.
Isso anuncia dois finais. Falsos. Para escolher
E
bem no finzinho, cairá a chuva.
Mas essa, irmãozinhos, é uma outra,
e rara, chuva
Eles ainda entregarão outras crianças
às águas, arrastados pelo desejo de
tocar o fundo
Por
que estas palavras, e não outras, para contar
pela primeira vez a vocês a história?
Agora
passo a narrar, sem fôlego,
às vezes alegre, às vezes triste,
todo o conteúdo de um dos meus sonos.
Um dos mais reais
Tudo
se dá aqui, entre luzes e sombras.
E não lá, onde respira o vapor dos
venenos cotidianos o leitor impossível de
tocar de outro modo, à traição.
Com estas mãos. As mesmas que revelarão
uma última porção de terra
fértil na palma,
depois que o último homem houver passado,
distraído,
olhando os pés que vão porque querem
ir como os olhos vão porque querem ir neste
texto que fala de uma tarde dada ao acaso.
O morto voltou numa tarde. Então começo
por essa tarde.
Também voltam os guinchos e os animais que
fazem uma careta cômica para a origem do bem
e do mal.
Eu falo do tecido fino onde a vida dá sentido
à vida.
E este é o relato.
Nele, vocês verão apenas dois focinhos
humanos.
O meu e o do sargento Nazareno.
Os outros estarão velados pela noite de uma
fábula detestável.
Mas ao mesmo tempo é uma atmosfera limite
o que me leva esconder as identidade das suas carnes
e a intenção de dar a vocês
um jogo e um ingrediente do susto infantil
A memória. Um retorno sobre os mesmos passos
para onde quer que se vá.
Mas não neste caso, talvez
Será uma fala da outra voz a invenção
do Nazareno e desta história escura, estremecida
de relâmpagos em plena estação
do medo
Meti
a mão no passado,
mas é um passado que guardo na memória
sem ter vivido um só momento dele, eu não
estive lá
para extrair um fantasma assim sem vida, um tanto
estragado e mutilado depois que o matei pela primeira
vez. E sujo de terra depois que eu o enterrei com
a ajuda de um cortejo de miseráveis e infelizes
criados pela imaginação, ou sonhados.
Ou é sem dúvida a memória.
Ou dos quais apenas me lembro desde que comecei
a falar de improviso, sem nenhuma realidade sob
os pés.
E
no entanto eu não minto
Tenho ainda um olho vivo e este outro olho, morto,
enterrado na cara. Mas ele é necessário,
como verão. Sem ele não teríamos
um morto de volta à vida.
E é pelo segundo olho, o que morreu, que
posso jurar
Embora seja o primeiro que veja que estamos prontos
para dar início.
- Tu és pó e do pó retornarás.
Esta
é a operação revoltada que
alterará o passado e a tradição
dos circos ambulantes, pela substituição
de uma única letra numa voz que fala de fatalidade
E
assim caímos, ou volta à tona o texto,
no momento exato em que o Nazareno está regressando
para começar a sua segunda vida, na qual
ele recusará todo o horror e as cruzes de
vidro que o dia de ontem alimentou no seu ventre
com rações de violência. Não
teremos mais seus dentes à mostra. Eu falo
de um homem que dirá adeus às cidades
e penetrará num rio com vegetais vermelhos,
em busca da felicidade, com uma provisão
de mistérios em cada lábio.
Eu
e os infelizes havíamos enterrado o seu corpo,
depois que eu o matei, num caixão capaz de
resistir ao ódio de um morto à traição.
Mas
a sua volta era a evidência, em pleno ar daquela
tarde, de que nem a madeira mais dura pode resistir
à outra intenção com que eu
conto esta história.
O
Nazareno voltava.
E carregava seu caixão na cabeça.
Ia entrando, com passos exaustos, pela rua que o
levaria à sombra dos monumentos irônicos
que espiam a vida na praça de Santa Maria
do Grão enquanto olhos ocultos o viam chegar.
E não respire, não viva. Ninguém
quis acreditar no que viu
Ele
estava acabado como um morto que segue em busca
de uma estrela, naquele fim de tarde de resto igual
aos outros, lento, parando para se deixar engolir
pela noite.
Quando parou, espanto e medo. Estava onde eu temia.
Vi que era o mesmo lugar onde eu havia espetado
o seu corpo com a faca,
uma emoção do rancor. Uma sombra de
homem com uma faca por trás de um homem adormecido.
Digo tudo o que vi no meu sono. Sem pudor.
Ele sentou. E era o chão onde eu fiz correr
um mar vermelho, o sangue apagado pela memória
das testemunhas e, também, pelos pés
do acaso fazendo a sua passagem por ali
Pôs o caixão do seu lado. Apoiou a
costa na parede de uma casa. A costa onde haveria
uma cicatriz azul, ao redor da ferida,
ou nada. Tudo podia ter sido apagado pela morte.
E sua cabeça caiu da altura de um abismo
para a paz do seu peito, um jardim sem piedade.
Afundando assim, ele dormiu. E esqueceu que havia
voltado.
E veio a noite com um vento negro, que deu fim em
alguns homens, espetáculo rodopiante de desesperos
e gritos.
As mulheres e as crianças, porém,
ousaram sair para as ruas e não foram molestadas
por estranhos. É assim a vida.
Quem
inventou esse vento?
O medo, que voltava, como antes, junto com o morto.
Ou ele é apenas o efeito artificioso com
que quero instalar, assim logo de início,
uma atmosfera ainda mais suspeita para fortalecer
este meu relato suspeito e destroçar todo
o poder infantil que vocês têm de aplacar
as tempestades.
Escolham
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