NÃO ERA SUICÍDIO SOBRE A RELVA
Seleção de poemas do livro:
Não era suicídio sobre a relva
Recife, 2000.

 

NÃO O RECOMENDO PARA OS OUTROS

este livro não tem imagens à venda
armário embutido amarelo
[armário embuste]
esconde as chaves da morte & do inferno
mastros obscuros do regresso
certas palavras quase encardidas
olhos roubados de escaravelhos
sobras de horas bem antigas
sombras ao redor
câmara sem rasgo & sem eco
resiste aos machados da família



 

A CISTERNA CONTÉM:
A FONTE TRANSBORDA

de tudo retiro água
pra fazer funcionar o poema
mesmo da estátua enferrujada
de William Blake dentro de um livro
se nada posso tocar na colheita
transgrido: roubo desfruto rapto
sem que nada aprenda & nada ensine
apenas espero veneno da água parada



 

ANTI-RECEITA

rara é o palavro
raso o armadilho
rala é o pálpebro
roto o maravilho



 

CURRICULUM MORTIS

fiz-me ao mar amargo da palavra
a morte é um cálice cheio de silêncio
contamina o que antes fora água –
ferrugem rara sobre a relva
soletra-me seu nome entre as pedras
o vento irado: espada afiada de dois gumes
ousa badalar os sinos que agonizam
tira dos gonzos a própria terra
o consolador das crianças mortas
palavra afogada no ódio

 

 

CORNUCÓPIA: AS FOLHAS

velhos poetas meus amigos
meninos ainda na memória
não tenho tido saudades de vocês
agrilhoados & vagantes
seguimos a mesma estrada
aonde vocês jamais estiveram
meus pés conduzem vocês
juntos enterramos o mar
meti na mão de vocês meu destino
meu passado não é mais meu companheiro
já fui saudado nas ruas
ou em pé na porta dos bares
olá Dylan Thomas olá Ezra Pound
palavras negras na brisa
aroma de cacto
noite & vaidade
segredos da pátria agora de vocês
velhos poetas meus amigos
[Bashô Homero Safo]
por toda parte com o mesmo silêncio
corpo livre dos limites
angústia outrora generosa
antes de amanhecer estou junto a vocês
[é minha falha nisso tenho prestado atenção]
das mangueiras que não são feitas pra agradar
a poesia se nutre
assim prefiramos a discórdia
luz esvoaçante sobre águas nervosas do
                              Arari
rio raso fluindo mistérios
a cor do céu o esmorecer da ribanceira
minha velhice sem calma
                                       O sol



 

TEMPO GLAUBER

poderás dizer fechado como estás
nesta amêndoa
relógio veloz & sem rédeas
oceano de memória com umbrais de sepulcro
noturna estação vista talvez pela última vez
com certeza você meu inimigo
um tipo de milagre tirado da rocha
[você preferia a palavra terra & acrescentava
a ela outras metáforas tortuosas: sol vento trovão]
você dirá [não vamos mais perder esta pista]
respiração submersa
triste amálgama de linfa & sangue
sem vagas expressões de conforto
mais uma crise de sufocação
você dirá ainda assim
das entranhas de um animal abatido
a terra é a última cicatriz

NAVE DO NADA
Seleção de poemas do livro
Recife, 2004.

 

dê-me um pequeno barco esguio
faça-me respirar por um instante à superfície
jogar nos dados [não mais ao acaso] uma bebida no bar
ver o deus do qual nada sei
fiz o que estava ao alcance de um anão fortuito
– o nada que as nuvens [uma vez mais] convidam a fazer

 

 

não havia uma cidade não havia ninguém em volta
agora já era uma rotina só eu & aqueles livros
um em frente ao outro durante meses
uma filha à espera de nascer [quando no futuro
ela olhará para mim fechada no seu próprio segredo?]

logo até isso se desvanece a próxima coisa é voltar aos livros
acreditar que me alimentam cada página uma nova comida
ainda que palavras sejam ininteligíveis
o importante é que algo volte a correr
dentro de mim dobre alguns de meus ossos
.

 

"não é verdade que anjos e palhaços
se ajustam divinamente bem?"
Henry Miller

 

outro corpo me inicia
no centro de mim uma imagem híbrida
tive a sorte de nascer homem não deus

anjo apocalíptico palhaço da libido
tudo que me foi retirado
não tive como recomeçar

credor daqueles que me rejeitam
não tive tempo
apenas prazo

 


 

para Jaime Ovalle interno no inferno


volto à poesia à beira da falência em livrarias precárias
o melhor livro pra um livreiro é o que vende bem
[os duros sobrevivem aos brandos]
Voltaire pirateava seus livros
escrevia uma utopia no vácuo
a página fala de coisas irrespondíveis
negro lago de lábios mortos
volto sem o rufar dos tambores
prosternado diante de um tempo que me domina
tarde demais pra melhor foto nas revistas especializadas
tarde demais pros impiedosos detalhes
o tempo insurge-se em seu melhor disfarce
/ o perseguidor /
dele a última palavra cinge a cabeça de Lúcifer



 

"mas sua sede sempre insaciada. talvez porque bebia, não água,
mas leveza, e promessa de leveza – como podia beber promessa
de leveza? talvez porque bebia, não água, mas certeza de brilho"
Malcolm Lowry

 

aviso aos morto: eu escrevo por nada
nem pela palavra nova nem pela velha
nem mesmo pra foder uma bela mulher
não tem nada que faça ressuscitar vocês
o poema é um recém-saído do nada
troco uma boa metáfora por mais uma bebedeira a bordo
não aguento um único dia sóbrio
a glória é nunca ganhar nada com o suor da cara
dinheiro & prestígio são pendores funestos
não quero viver desse por-favor-comprem-me-lá-nas-feiras-do-livro
sequer rezo à Virgem dos que não têm ninguém ao pé por um único leitor
palavras estão livres de destino
obscurecem a respiração drogada das árvores
formam juntas um cemitério


 

fui ontem a enterrar Fernando Pessoa
num jazigo banal do Cemitérios dos Prazeres
surpreendeu-o a morte
a doença que não lhe pertencia
anterior modesta hospitaleira
acertou-o em cheio
a bala da misericórdia a liquidá-lo
de um susto
toda Lisboa a contragosto
[estética moral metafísica
todo esse comércio sem escrúpulo
inclusive ciência fé amor]
descem com ele à cova
está-se indefeso ante esse tipo de coisa
mesmo um morto esquivo à companhia
sobre quem sempre se quis soltar os cachorros
sem casa sem título sem dinheiro
detido agora no abismo & no silêncio
ferve a ausência & o mistério que sempre soube

 



três anos de Paris
sitiado & sitiante
sob a força de um destino cego

um vago amor duas ou três paixões
nem deuses nem cantos
nem a beleza das mulheres

dispersar-se foi a forma que achou para habitar a terra
ou ainda: certa zona louca de seu mundo interior
até o ponto extremo de não mais se distinguir nem se saber

mostrar a imagem nada além de imagens obter
cinquenta & um poemas – eis tudo
nem mito nem ciência nem razão
nenhum outro indício

houve ainda duas ou três cartas enviadas a Fernando
[trancara-se & selara-se pro amigo]
véu negro da palavra o silêncio
última intuição que talvez seja a verdadeira

 

 

Esta minha já avançada idade
Me ensinou a resignação de ser Borges
Prólogo

 

nunca fui Jorge Luis Borges
sobrevivi a esse nome por acidente
dissolvido num verbete
da Enciclopédia Sudamericana [Santiago do Chile 2074]
o som j em castelhano
como José Francisco Isidoro Luis Borges
autor & autodidata
último trapaceiro da linguagem
olhos danificados
pela aridez das palavras
deixado a mim mesmo
& a meus duplos
Morto em La Verde
                                ante as balas
tentei esboçar o mundo
povoá-lo com imagens
um labirinto de reinos astros naves
desfizeram a linha do meu rosto
                                                    ave desfigurada até os ossos
a noite selvagem trovoando em meu crânio
em que parte
                      em que tarde
o fechado sol de Buenos Aires?
no elevador na sala nas flores no cadáver de Leonor?
filho desfavorecido
                                equilibrado sobre o mar
o nome o renome o rumor
dois ou três amigos – desses pelo menos dois me odiaram
talvez Sábato ou quem sabe Cortázar
a literatura é o ardil favorito dos deuses etc.

 

 

"ó tu, fatal emblema de nossa alegria!"
Stéfhane Mallarmé

 

anjo cego da expiação

ele estava esperando
em silêncio esperando
entregava-se ao que criava
um livro sem título
o dorso amargo de uma fruta
em que se via o mastro
eriçadas palavras talvez sem rumo
provocadas a entrar na nave
                                        [no livro
não mais de ferro vestido
nem de eternos pergaminhos
                                        mas construído no ar
para a viagem do mito & o mistério dos horizontes
folhas de bizarra flor negra
expostas a uma tempestade que se multiplica na memória
propagada até a última noite
a um limiar interdito
                           o fim a fenda o nada
última voz seguida ainda de uma outra
o verbo dissolve todos os elos
                                         a estepe o verso a ravina
açoitados pelo vento
borboletas ziguezagueando no alto
                                                 tuas palavras aéreas
minúsculos demônios vermelhos
avançando crescendo
                             movendo-se
com a precisão dos planetas
                                       & depois
quebrando-se
                   perdidos & abismados fragmentos
emissários alados da morte

 

 

talvez com um vestido azul
                                            com bolas brancas
chegaste
                enfeitiçada senhora
a esta estranha cidade
                                     destinada a não ser porto
                nem metrópole
em sujas & desleixadas ruas
                                               numa tarde
[ou já seria noite?] nos assombraram senhora teus lábios
entre as coabitações da lua ou numa tarde chuvosa
lábios tão secos velhos caminhos de pedras portuguesas
sem dizer palavra chegaste cidade de onde tudo levam as águas
saltavas de teus livros valise de cronópio ao lado
talvez com um vestido azul
                                            com bolas brancas
passageira das estrelas
                                       chegaste
cidade de onde tudo levam as águas entre as coabitações da lua
ou numa tarde chuvosa saltavas de teus livros
lábios tão secos sem dizer palavra valise de cronópio ao lado
em sujas & desleixadas ruas
                                               numa tarde
[ou já seria noite?] partilhavas tua beleza
ferida que não fecha
                                  precária & preciosa

 

Ney Ferraz Paiva
neyferrazpaiva@gmail.com