O Endereço Cremado

MMMora em mim uma casa. Todos os domingos, quando a tarde finda, ouço a voz da minha mãe.
mM- Eh, menino, prepara o braseiro.
MME ela vinha pelo quintal colher algumas folhas e ervas. Folhas de abre-o-caminho, mucuracaá, jasmim, canela e macega. Eu cuidava do carvão e da lata.
MM- Menino não vai te queimar. Já és homem!
MMSete pedras de carvão era a carga da lata. Retesava bem o arame, conferia os engates, dobrava as sobras e entregava a corda ao vento. O som se fazia eterno. Zumbido do braseiro crescendo, o corpo ao lado girando a queima. Sabia que tinha que me desviar de algumas fagulhas. A vida que se aprende. A Cidade Velha.
MMDo quintal, subia as escadas de mármore e minha mãe já me aguardava. O rosário vencido. As ervas suadas na mão, segredos das palavras, caíam sobre o carvão iluminado. E nascia a fumaça que ia se serpenteando pelo corredor. Primeiro era o quarto dos santos, espécie de santuário de sua comunicação materna. Pra mim, o quarto do Sagrado Coração com sua luz iluminada. A vida daquele espaço era aquele lume vermelho. Luz pequena, mas imensa. Viva, intensamente viva em minha íris. Ela perguntava, sabendo a resposta. Queria fazer meus olhos verem. Insistia.
MM- Menino, a luz está acesa?
MMSim.
MM- Bendito seja o Senhor.
MMHouve o tempo do medo das rezas de minha mãe. Medo daquele quarto, daquele santuário. Medo do altar, das sombras dos santos. Medo do Sagrado Coração cintilante. Angústia da vida irrevelada de um menino. E minha mãe seguia, como segue até hoje, com suas rezas, em direção ao quarto do meu pai. Doente há mais de um ano, minha mãe rezava nele a fumaça benzida. A primeira fumaça. Pedia misericórdia. E de minha mãe eu via as costas irem sumindo pra dentro da casa. Ficaram o cheiro das ervas, as palavras rezadas e a luz do defumador em todo fim de tarde de domingo. Ficou também alguma fraqueza da escuridão do corredor. Do tempo da casa, como se ele quisesse levar minha mãe.
MMA hora foi cedo, muito cedo. Meu pai não se demorou muito. Uma outra face da casa descobri na sua partida. O velório. Meu pai foi velado em casa. Aquele espaço na sala da frente ficou sempre marcado como o lugar do corpo de meu pai. Meu pai se cristalizou com a sua morte. Ali, naquele espaço que eu decifrava, ele ficou. E foi ficando cada vez mais silêncio, fecunda a sua mudez pela sala. A hora que floresce em mim todo ano. Ficaram de meu pai as suas mãos e um último abraço que não dei. Ficou de meu pai essa parte da casa segredada em mim. A marca. Na outra manhã, a mulher que renascia força.
MM- Menino, reza pra São José.
MMAs palavras nascidas depois de meu pai. No quarto da luz, o livro aberto com o meu nome inscrito na oração do Santo. E assim me fiz devoto.
MMMinha mãe foi o piano. E sua luta como professora. Minha mãe se fez o homem da casa. Mais forte que os cinco filhos homens. E sua mansuetude apenas letrava as palavras. Nunca a vi chorar e achava que ela era de pedra. Uma vez no mês tínhamos o serviço de limpar o porão. Minha mãe era aquela creolina, o seu odor ácido, os braços no escovão e o vestido todo molhado. Minha mãe não teve outro homem e isso algum dia me incomodou. Talvez traísse meu pai, mas me agradava a idéia de uma voz de outro homem pela casa. As palavras foram simples quando perguntei a ela por que não se casava de novo. Palavras que desencorajaram um menino inquieto. Feriram para que eu entendesse o amor no exílio. O sentido dos filhos. Talvez o amor pra minha mãe fosse aquele porão. O encanto das coisas esquecidas, o que não se muda, o musgo das coisas. A água que lava e revela a marca de um só viço.
MMAprendi com minha mãe a unidade de todas as mulheres. A unidade das mães. O princípio da natureza.
MM- Menino é a guerra. A desgraça das mães.
MMVi o desespero em seus olhos. Li a agonia de todas as mães nos soldados meninos da Argentina em guerra com a Inglaterra. Vi todas as mulheres nas imagens de minha mãe. Os olhos da barbárie. E naquele dia, que não era um domingo, ela percorreu todo o caminho do defumador. Em suas mãos um punhado farto de arruda que ela distribuía pela andança do braseiro. Refazendo o terço, minha mãe ia corredor adentro. A arruda queimada de fé. E sua reza tinha um destino. Eu sabia.
MMEu sou aquela casa. Na parede da sala, o retrato oval da família. As calhas que seguiam o corredor e derramavam a chuva em minhas mãos. De todas as paragens, o amor marcado. A vida escorrida pelas calhas. O sol semeado no caminho do quintal.
MMA casa ficou muito grande pra minha mãe. Os filhos crescidos e lançados ao mundo. Lembro de uma última visita que fiz a ela.
MM- Vem cá, meu filho! Aqui, na escada do quintal.
MMEntre os degraus nasceu uma pimenteira. Ao meio-dia ela morre e renasce toda noite. Verde que reivindica outra chance. Outra manhã.
MM- Folhas de pimenta pro braseiro! Saiu, timidamente, de sua voz.
MMA vida que não pode ser feita só daquilo que perdemos.
MMO carvão iluminado. Fiz o defumador pra minha mãe.
MMEla, com suas ervas e folhas, abençoou a casa e a minha cabeça.
MMAs últimas palavras.
MMAinda leio suas costas sumindo pelo corredor sem fim.
MMO carvão iluminado. Toda a minha vida naquela queima
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Daniel da Rocha Leite
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