a gente não sente a dor do outro
caminhando entre os carros
diante de um cachorro
– difícil esquecer o que somos –
nas etapas da vida
o tempo dura meia dúzia de rosas
e sobre o cimento desta escrita
a eternidade

carta de camille claudel a auguste rodin

depois
passados anos num manicômio
a bosta continua fria como o barro
como o coração e a escória, rodin

as tripas que não quis arrancar
este legado de dor
palpável nas cerimônias onde não estavas
e onde minha febre
feria os puros de ignorância, rodin

continua nas entranhas daquela paris
talvez ainda o carregue para casa
            esculpi-lo em ódio quebrar tua cabeça
talvez eu esteja doente
como todos dizem
(de vários modos – talvez)
mas só a própria voz é realmente verdadeira para condenar
e se vou calada, rodin
é porque morrera em cada obra que fiz

depois
passados trinta anos num manicômio
resolvi fazer parte do barro que continuava frio
e não da bosta que foi o amor

in memorian

                 para a elanje


a saudade

é uma extravagância trazida pela dor

lentamente
os martelos são arremessados em tua cabeça

uma porta é vedada na canção do dia
o augúrio dos sinos
remetem ao teu povoado
noite
contra o silêncio das grutas

a desaparecida obra do corpo
(na inteligência da canção)
pergunta:
– que lado preferes?
e respondes com teu toque frio e calcinado:
envenena

reconhece o céu pelas mãos
(as nuvens guardam doenças
)

o azul é uma mistura falsa
de sonhos desfigurados no tempo
um morto de setenta anos num homem
de setenta anos

manso ruminante

asilo de netos na casa
paredes de memória e tato
a pobre mãe escolta a cozinha
lonjura de santo-adeus na última palavra:
esperança

o segredo
é tornar-se inaceitável

poesia

aparente mortalha de meu pensamento
quando um bastardo vagueia por minha ausência
e me arranca o silêncio da cara

a última buenos aires

                                 Ahora estás em mí. Eres mi vaga
                                 suerte, esas cosas que la muerte apaga.

                                                              Jorge Luis Borges

descer  o rosto sobre os mortos
é não perpetuar a paciência da doença sem a cura
o vício da carne em apodrecer
                                ocaso eterno
avança ao ontem com espanto solitário
existe uma alma
um luto no eixo da noite pronto para girar

fogo –
fátuo queimando na altura de borges
a última buenos aires

ofício


espera mais um pouco
obedece tua criação
há pouco sonho lá fora
para uma ilha indiferente
tardia em tua mutação
sente a forma que é o exílio
sacia-te na lança das noites
procura atrás do peito o teu conforto
observa:
que o vento é feito de nada
um nome ou um rumo
não são maiores que olhar-se no espelho

quebra teu voto de vida

aproximo o rosto daquele sentimento
que nunca me foi dado
não tenho certeza da genialidade
que compõe um sentimento
ao meu ver:
pessoas feito sofás
prontas para dormir
depois de rezar o pai-nosso

eu-ilha

do silêncio
insustentável
a praia umedece o mar
num mergulho sem fim

abre-se um confessionário:
é noite

na tarde
em que sol não existe mais
e a rede não traduz o descanso
o sossego
é uma folha no telhado

imortal

 

reinventando a morte

enquanto o sulco
derramava-se pela última vez
deixando escorrer o enxofre pela casa
o armário era esvaziado
desencontrava-se com o vazio
em seu próprio semblante
enquanto o leito confundia-se ao espírito
e a oração inebriava a madrugada
com seu luto
mais um café era servido
e sem a intenção
de reinventar a vida

                                  – com tantos outros assuntos –

a morte era esquecida