SER ÁRVORE
Ser árvore;
amanhar
entre as manhãs
os musgos, os mênstruos
da seiva, em si,
cipós
de sóis
estendidos ao
porto do ser.
Ser árvore, entre-lugar
algum onde pousam
asas indecifradas
de pios roufenhos
e um rio sopra
uma ária breve
emaranhada
de manhãs.
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DO SILÊNCIO
Ser silêncio
não é ter:
é voltar
a si o som
do oco
poço
o fosso
do fácil;
vocábulo:
a gênese
da oculta
lavra
no vazio.
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GÊNESE II
Das cercanias
do sol
ao cipoal
dos encantos
eis o poema
a palavra
rompendo
a cerca
dos silêncios.
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RUÍDOS
O conversê dos caracóis
e outros bichos
um quieto rio
de murmúrios
entre outros rios
— tortuosas vias líquidas
que crescem como veias
no cerne da mata,
onde os musgos
se apegam às raízes
e se emaranham
feito cognatas.
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SER PÁSSARO
Ser pássaro
é não temer o voo,
tampouco o risco
do abismo.
Ser pássaro
é cartografar
o invisível
ou caraminholar
rufar de asas.
Ser pássaro
é ser infante:
quem é que sabe
dos desígnios
desse incerto?
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DESEJOS
No princípio queria ser rio
para que ninguém lhe
soubesse os caminhos.
Após, declinou do insano
e adivinhava sementes
entre os igapós e canaranas.
Depois quis ser pássaro
pela incertidão dos voos.
Por fim
abriu os braços
e se quedou plantada
árvore que ouve os rios
e aonde os pássaros
acordam as manhãs.
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SEXTETO PARA FAGOTE E MEMÓRIA
Não é a sombra
(tigre ou Tanatos?)
o que me assusta;
É o fantasma
(Hamlet, Hamlet!)
do esquecimento.
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ANOTAÇÕES
No tempo em que o mundo
era o meu caderno
eu sabia das entrelinhas
das miudezas do solo
(arquipélago de angústias)
e desenhava riscos n'água
para que o vento os levasse.
No tempo em que o mundo
tinha como cartografias
somente aqui e aonde,
num caderno rústico
de papel cor de madeira
atado com barbante,
eu anotava, zeloso,
um certo rol de espantos.
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PRÓDIGO
Eu vos deixo minha sede.
Murilo Mendes
Entre as inquietas
esquinas em que
eu vi naufrágios,
no bolso trazia
um nome,
em papel obscuro
(amarfanhada escrita)
com números borrados
como a memória
do filho em retorno
à casa antiga
que nunca saiu dele.
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ELEGIA Nº 2
Os pássaros vieram beber no sol.
Murilo Mendes
Ainda não te ias,
amigo e irmão,
mas o tempo
nos cobra caro
a desídia
no viver.
Ainda não era tempo
de transpores o umbral;
havia manhãs azuis
para encantar-nos
em sábados da Criação.
Entanto, irmão,
tu te foste,
como se o tempo
cobrasse a dívida
do que foi
esquecimento.
Agora, nessa manhã,
os pássaros pousam
nos fios da rua
bebem o sol,
o sumo do dia,
e tu repousas
nessa planície amorfa
aonde se amortalham
todos aqueles
que um dia
esqueceremos.
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