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                              Dentro do ônibus abafado e cheio de gente, 
                              um barulho incessante de motor e suspiros. Inês 
                              lembrou da infância. Uma memória dolorida 
                              e cheia de mágoa. A mistura enjoativa de 
                              fragrâncias dentro do ar oprimido do ônibus 
                              entupiu a atmosfera, criou uma massa espessa de 
                              desesperadora náusea em Inês. 
                            Os 
                              cheiros da floresta entraram em ebulição 
                              em sua memória. O igarapé de águas 
                              frias e escuras se materializou à sua frente. 
                            A 
                              cada esquina que o ônibus virava, Inês 
                              se perdia na mata das lembranças. Nenhuma 
                              palavra expressava aquela passagem entre frio e 
                              calor. Cada olhar que via descascava uma fruta amarga, 
                              cheia de pequenas larvas de dor; palavras que não 
                              possuía; tristeza que puía sua vida. 
                            Seu 
                              cheiro de menina calada, as pernas finas, tuíras 
                              e cheias de feridas. Andava na mata silenciosa sempre 
                              a olhar para cima, esperando ver um avião 
                              que, muito raramente, cruzava o céu daquele 
                              lugar perdido nos verdes de folha e sombras. 
                            Em 
                              sua meninice, Inês esperava que um dia um 
                              avião descesse ali e a levasse embora para 
                              a capital, para qualquer cidade onde pudesse ver 
                              mais além do que via. A doença, a 
                              marca da fumaça das árvores queimadas 
                              no quintal, as longas e intermináveis chuvas 
                              a marcarem os meses daqueles anos sem fim. 
                            Aprendeu 
                              que tudo descasca como um fruto que cai da árvore, 
                              uma pedra que dança ao sol do meio-dia. A 
                              lembrança tardia do pó de cinzas das 
                              fogueiras e das fagulhas do vai-e-vem na noite escura 
                              trouxe um travo à sua boca. Recordou o pai, 
                              sua insanidade de bêbado a recitar uma oração 
                              inaudível, suas roupas encharcadas. Reviu 
                              os dedos magros a receberem os pingos da chuva que 
                              escorriam das palhas úmidas da cumeeira. 
                            No 
                              mundo feito de chuvas brancas, folhas e frutos, 
                              existia apenas o pai, os irmãos de quem tinha 
                              que cuidar, a mãe sempre barriguda de meninos 
                              que nasciam e morriam, as surras, a "montaria" 
                              que cruzava os "furos" infinitos, os peixes 
                              que detinham um olhar de terras distantes, de águas 
                              profundas. Os maruins a fazerem uma festa dolorosa 
                              na pele seca de sua magreza infantil. 
                            Um 
                              solavanco tirou-a do torpor das lembranças. 
                              O sol bateu em seu rosto. O ônibus sacolejou 
                              pelas ruas esburacadas. Arrumou os cabelos crespos 
                              e secos. Pensou que teria que pedir dinheiro à 
                              patroa para comprar remédio para o filho 
                              doente. 
                            Casas 
                              e edifícios passavam borrados pelo movimento 
                              do ônibus. Construções sem conexão 
                              com seu passado. Passado que também não 
                              tinha ligação com as árvores, 
                              com as flores dos jardins.  
                            Pela 
                              janela do ônibus passavam o caminhão, 
                              a mudança de móveis pobres, os quartos 
                              e suas penteadeiras, as cozinhas, as geladeiras, 
                              as varandas, o chão cheio de folhas se decompondo, 
                              as janelas e o barulho das chuvas. Um vôo 
                              entre as brechas dos edifícios cheios de 
                              gente. 
                            Inês 
                              não quis chorar.  Apenas 
                              deixou que seus olhos vagassem na paisagem difusa 
                              da cidade. 
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