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Alexandra
teve certeza que um galo cantou na noite. Não
deveriam existir mais galos, pois os quintais já
quase nem existiam. Pensou que deveria ter sido
uma lembrança da infância. Dera para
ficar sentindo cheiros antigos. Memórias
perdidas há tempos voltavam com uma força
desconhecida e de forma tão abrupta que a
transtornavam.
O galo, as galinhas no quintal. Um anúncio
do dia.
Ela foi até a janela do apartamento e olhou
as luzes distantes, nas ruas; brilhos amarelos,
azulados e vermelhos em um pisca-pisca sem ritmo
definido.
A casa grande de madeira, os primos e os irmãos
a brincarem nas árvores, pela terra do chão.
Com estremecimento e rubor recordou dos primos a
se agarrarem com ela, brincando de casinha. Ela,
a mãe que todos queriam dormir e roçar.
Adorava aquilo. O corpo de criança entrava
em êxtase. Os primos se revezavam naquelas
sessões de abraços e movimentos lúbricos.
Os mais velhos riam com cinismo, roçavam
os paus duros nas carnes frescas de Alexandra.
Havia galos que olhavam aquelas cenas.
Havia frutos que exalavam cheiros naqueles momentos.
Uma mulher, tantos homens, todos eram dela. E ela
amava cada um deles. Os irmãos eram mais
tímidos, mas os primos a tratavam como uma
amante deveria ser tratada. Pelo menos era assim
que pensava quando criança.
Um dia, o primo Paulo morreu. Ela já vira
a mãe matar muitas das galinhas do quintal,
já havia enterrado um gato muito velho que
vivia na casa. Tinha consciência da morte
como uma viagem longa. Quem partia nunca mais voltava
e quem ficava sempre acabava esquecendo o rosto,
o cheiro ou mesmo as palavras, o nome de quem partia.
Para Alexandra, tão criança, o primo
Paulo era o melhor “marido” de suas
brincadeiras. Um pai carinhoso com as bonecas –
os outros sempre tratavam com desprezo as suas filhas
de plástico e de cabelos louros e brilhosos
-, um marido que perguntava como havia sido seu
dia e se as crianças tinham dado trabalho.
Paulo sempre lhe beijava na face antes de deitarem
e se roçarem desajeitadamente, com sofreguidão,
sobre o lençol posto na areia fresca. Alexandra
gostava de sentir a pele suada de Paulo, sempre
com um perfume tão adocicado, com um gosto
meio salgado a sair dos poros e a cair em sua língua.
No caixão, Paulo estava coberto de flores.
As mãos de dedos finos e magros cruzadas
sobre o peito. Os lábios sem cor e pequenos
formavam uma boca delicada e parecida com as bocas
das bonecas de Alexandra.
Esqueceria o rostode Paulo, seu cheiro e gosto,
mas nunca lhe sairia da memória aquela boca
pequena e perfeita, aqueles lábios levemente
separados no meio, como a lhe pedir um beijo.
Enquanto todos choravam a morte de Paulo, Alexandra
estava feliz por ele. Uma alegria que não
demonstrava para não assustar as pessoas.
Quando a sala ficou um pouco mais vazia, aproximou-se
do caixão. Olhou a tia, mãe de Paulo,
seu rosto abatido, os olhos presos no vazio.
- Tia, me levanta que eu quero ver o Paulo e dar
um presente pra ele.
A tia saiu do torpor em que se encontrava e atendeu
ao pedido. Nos braços dela, Alexandra pôde
ver com mais clareza o rosto fino e alvo do primo
morto, aquela boca que tantas vezes beijara seu
corpo e rosto. A menina pegou a pequena boneca que
trazia consigo e a ajeitou sobre as flores, entre
o tronco e o braço do menino inerte.
- É pra ele não ficar sozinho, tia.
Paulo, fica com ela. É minha melhor filha.
Abaixou-se e beijou de leve a boca fria de Paulo.
A tia começou a chorar e a colocou de volta
no chão.
Alexandra nunca mais teve um primo que a tratasse
com o mesmo cuidado, mas continuou a brincar com
os outros sob a sombra da goiabeira.
Agora, olhando as luzes da cidade, sozinha, sem
marido ou filhos, sem primos que pudessem beijá-la,
insone na madrugada, tentava entender aquele canto
rouco do galo e por que o dia insistia em não
vir.
Alexandra estranhou o súbito silêncio
daquela noite sem fim. |