DESTERRO


Ah, aquele campo de sombras! Vultos trabalhavam pelas raízes dos jambeiros. Umedecidas as plantas dos pés, o menino dava seus olhos ao verde, sentia seu corpo avançar para baixo, com sol e lua a mediar seus espaços. As peles entre os dedos, território de líquidos.

Ah, aquela dor das urtigas! Fogo veloz sob a pele branca dos pés do menino. Tudo parecia quieto, silêncio da epiderme no calor das tardes de junho. Escorria de dentro dele o silêncio, como se fosse chão que nunca havia visto o mundo, um desterro maldito e inevitável daquela infância que se diluía em fugas pelo quintal. Uma espécie de esquecimento morno tombava a vontade do garoto. Ele teve um assombro de gente grande, atrás dos troncos encalhados no mar de capim rasteiro.

Um pássaro negro rasgou o céu sem nuvens – azul de languescer-se – sem pio, sem canto. Um vôo em silêncio assustador. E em tudo aquele cheiro de mato cortado. Folhas bailavam em redemoinho de vento perdido. A sombra do menino riscava o muro de tijolos. O limo crescia pelos cantos esquecidos. O cheiro de terra invadia a casa e os outros quintais.

Capinação deixava expostas raízes que dormiam seu sono de chão e húmus. Touceiras de capim desprendiam aromas terrosos. A tarde se perdia no tempo, colocava asas vermelhas no fim do dia. Antes de tudo enegrecer, o menino corria para a goiabeira e deixava que a frieza daquele tronco liso e gelado lhe trouxesse um pensamento solto no vento geral. A goiabeira trocava de casca, serpente vegetal.

No quintal, os tajás repeliam os pingos da chuva. A velha mangueira, gorda, jogava grossas bagas d'água em cima do corpo do menino. E um cheiro de mato sem nome se desprendia de seus poros.

A lua nascia com sorrisos. Doía o silêncio dentro do matagal. Abriam-se constelações. O menino ouvia a conversa dos rios, queria comer a noite, saber que gosto tinha a lua. E ia para o mato entender o amor.

Ah, aquela luz nas folhagens! Tudo no quintal parecia beber silêncio. Uma melodia vinha de longe, trazendo queixas de folhas caídas. Crescer era uma amargura secreta, trazia agonias feitas de cortes profundos. Raízes amputadas previam dores arbóreas. Angústias o tocaiavam nas esquinas das ruas. Ele espiava tudo aquilo do altar solitário de sua meninice. Os dias escorriam pelas paredes de hera. A vida não precisava de Deus.

44

Alexandra teve certeza que um galo cantou na noite. Não deveriam existir mais galos, pois os quintais já quase nem existiam. Pensou que deveria ter sido uma lembrança da infância. Dera para ficar sentindo cheiros antigos. Memórias perdidas há tempos voltavam com uma força desconhecida e de forma tão abrupta que a transtornavam.

O galo, as galinhas no quintal. Um anúncio do dia.

Ela foi até a janela do apartamento e olhou as luzes distantes, nas ruas; brilhos amarelos, azulados e vermelhos em um pisca-pisca sem ritmo definido.

A casa grande de madeira, os primos e os irmãos a brincarem nas árvores, pela terra do chão. Com estremecimento e rubor recordou dos primos a se agarrarem com ela, brincando de casinha. Ela, a mãe que todos queriam dormir e roçar. Adorava aquilo. O corpo de criança entrava em êxtase. Os primos se revezavam naquelas sessões de abraços e movimentos lúbricos. Os mais velhos riam com cinismo, roçavam os paus duros nas carnes frescas de Alexandra.

Havia galos que olhavam aquelas cenas.

Havia frutos que exalavam cheiros naqueles momentos.

Uma mulher, tantos homens, todos eram dela. E ela amava cada um deles. Os irmãos eram mais tímidos, mas os primos a tratavam como uma amante deveria ser tratada. Pelo menos era assim que pensava quando criança.

Um dia, o primo Paulo morreu. Ela já vira a mãe matar muitas das galinhas do quintal, já havia enterrado um gato muito velho que vivia na casa. Tinha consciência da morte como uma viagem longa. Quem partia nunca mais voltava e quem ficava sempre acabava esquecendo o rosto, o cheiro ou mesmo as palavras, o nome de quem partia.

Para Alexandra, tão criança, o primo Paulo era o melhor “marido” de suas brincadeiras. Um pai carinhoso com as bonecas – os outros sempre tratavam com desprezo as suas filhas de plástico e de cabelos louros e brilhosos -, um marido que perguntava como havia sido seu dia e se as crianças tinham dado trabalho. Paulo sempre lhe beijava na face antes de deitarem e se roçarem desajeitadamente, com sofreguidão, sobre o lençol posto na areia fresca. Alexandra gostava de sentir a pele suada de Paulo, sempre com um perfume tão adocicado, com um gosto meio salgado a sair dos poros e a cair em sua língua.

No caixão, Paulo estava coberto de flores. As mãos de dedos finos e magros cruzadas sobre o peito. Os lábios sem cor e pequenos formavam uma boca delicada e parecida com as bocas das bonecas de Alexandra.

Esqueceria o rostode Paulo, seu cheiro e gosto, mas nunca lhe sairia da memória aquela boca pequena e perfeita, aqueles lábios levemente separados no meio, como a lhe pedir um beijo.

Enquanto todos choravam a morte de Paulo, Alexandra estava feliz por ele. Uma alegria que não demonstrava para não assustar as pessoas.

Quando a sala ficou um pouco mais vazia, aproximou-se do caixão. Olhou a tia, mãe de Paulo, seu rosto abatido, os olhos presos no vazio.

- Tia, me levanta que eu quero ver o Paulo e dar um presente pra ele.

A tia saiu do torpor em que se encontrava e atendeu ao pedido. Nos braços dela, Alexandra pôde ver com mais clareza o rosto fino e alvo do primo morto, aquela boca que tantas vezes beijara seu corpo e rosto. A menina pegou a pequena boneca que trazia consigo e a ajeitou sobre as flores, entre o tronco e o braço do menino inerte.

- É pra ele não ficar sozinho, tia. Paulo, fica com ela. É minha melhor filha.

Abaixou-se e beijou de leve a boca fria de Paulo. A tia começou a chorar e a colocou de volta no chão.

Alexandra nunca mais teve um primo que a tratasse com o mesmo cuidado, mas continuou a brincar com os outros sob a sombra da goiabeira.

Agora, olhando as luzes da cidade, sozinha, sem marido ou filhos, sem primos que pudessem beijá-la, insone na madrugada, tentava entender aquele canto rouco do galo e por que o dia insistia em não vir.

Alexandra estranhou o súbito silêncio daquela noite sem fim.

Ailson Braga
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