Uma ponte entre a palavra e o silêncio
Escrita vigorosa e inclassificável de Vicente Franz Cecim se apropria da prosa, do verso, da filosofia e do romance
...........Alberto Pucheu
Diante do indizível, tudo o que se pode falar será sempre pouco, mas, justamente porque estamos diante dele, devemos falar, muito, para, de algum modo, redizê-lo a cada instante, para mostrá-lo enquanto o que, da vibrante materialidade da linguagem, se ausenta para que ela apareça em toda sua força. Escrever, então, é um gesto que, pelos ruídos da mancha negra da página, flagra o silêncio em sua fuga. Na linguagem que vemos, o rastro da que não vemos. Nos livros visíveis, os vestígios deixados pelo livro invisível. A presença da escrita através da fábula
Se Andara é a Amazônia mítica criada por Vicente Franz Cecim, é porque, na encruzilhada entre o manifesto e o não-manifesto, ela é vida. O livro se mostra como uma ponte entre a palavra e o silêncio, entre o visível e o invisível, entre o ser e o não-ser, entre “a vida lá” e “a vida vivendo aqui”. E a literatura, como uma outra vida que insiste em tornar possível a experiência da vida como a vida é. No mito de Andara, a presença da escrita através da fábula: não é o escritor quem fala, mas as árvores, as aves, a floresta, é vida mesma quem fala ao homem para sua aprendizagem através das falas de Andara. Quando é o homem quem fala ou escreve, quando outro apelido de Andara pode ser Vicente, Franz ou Cecim, é porque, falando na seiva da linguagem, quem fala por esses apelidos já é Andara ou, como dito, vida. O livro-floresta é o lugar que habitamos e precisamos habitar para saber da vida quem ela é e, sendo-a, quem somos nós.
Há muito, o projeto do paraense Vicente Franz Cecim é dos mais originais e ousados em nossa literatura. Se fomos obrigados a esperar primeiro a edição portuguesa de Ó Serdespanto, com o alarde maravilhado que lá causou entre as melhores cabeças pensantes, para, só então, termos o livro publicado por aqui, pior para nós, seus leitores, seus conterrâneos, que necessitamos de sua leitura como instigação ao que somos e ao que fazemos. Muitas vezes, somos lentos no que diz respeito a nós mesmo. O fato de um livro como esse, como toda sua obra anterior, não ser extremamente divulgado e valorizado entre nós ainda é fruto de um imenso desconhecimento que temos de nós mesmos e de certo provincianismo que – é bem verdade, cada vez menos – ainda resiste por aqui.
Na orelha do livro, referindo-se ao “thaumazein” grego, Benedito Nunes salienta com toda pertinência que Ó Serdespanto é um livro-poema que tem uma origem filosófica denunciada pelo próprio título (além disso, as aves filosóficas que pousam pelas respectivas páginas são, explicitamente, Heráclito, Plotino, Novalis e Kant e, implicitamente, Heidegger e Nietzsche, dentre outros). Pelo menos desde Platão, a palavra grega para dizer espanto é a que assinala a origem da filosofia, o desde onde a filosofia nasce e que, nela, continua a existir em todo o seu percurso a cada vez que ela se presentifica. O filósofo e crítico paraense poderia ter acrescentado que, para Aristóteles, estando na origem da filosofia, essa mesma palavra está, igualmente, na origem da poesia. Através do espanto, filósofos e poetas são o mesmo
Na ausência de conhecimento, sem caminhos, sem saídas, perplexos diante da constante aporia que a vida nos impõe, diz Aristóteles, é através do espanto que, de certo modo, poetas e filósofos são o mesmo. Assim, Ó Serdespanto é o homem que, através do indiscernível entre o originário do filosófico e do poético (“Eu sou a origem. Eu estou Lá na origem de tudo”), faz a vida como ela é – Andara – comparecer no corpo do livro. Enquanto que, na hegemonia da história do pensamento ocidental, essas duas experiências do pensamento e da linguagem estiveram cindidas, Ó Serdespanto aposta numa junção entre elas, respondendo com exemplaridade à requisição feita por Giorgio Agamben quanto à “urgência para nossa cultura de reencontrar a unidade de sua palavra fraturada”.
Para realizar da melhor maneira essa demanda, Vicente Franz Cecim faz da linguagem uma aventura e exuberância amazônicas: palavras-valises, conceitos, personagens-conceituais, imagens, forte musicalidade, fábulas, mitos, sonhos, delírios, discussões filosóficas, palavras iniciando com maiúsculas no meio das frases, páginas em branco, a importância da diagramação, do vazio e das manchas negras das páginas... De fato, são muitos os procedimentos usados por este livro que se apropria da prosa e do verso (fazendo algo que, na maior parte do tempo, não é nem um nem outra), da filosofia, da poesia, do romance e da mística em busca da perfeição da linguagem e do pensamento, encontrando uma escrita completamente vigorosa e inclassificável. ALBERTO PUCHEU É POETA E PROFESSOR DE TEORIA LITERÁRIA DA UFRJ / O GLOBO - PROSA & VERSO RIO DE JANEIRO - SÁBADO, 28 DE JULHO DE 2007.
A
fulminante trajetória literária de Cecim, que se iniciara
com o belo, poético e enigmático poema em prosa Viagem
a Andara, o livro invisível, prossegue com um livro,
se possível, mais rico e fascinante ainda: Silencioso
como o Paraíso. Um dos mais perfeitos livros surgidos
no Brasil nos últimos dez anos, imbuído de poesia, encanto
e o que Guimarães Rosa chamava de 'peregrinação álmica'
(da alma). LEO
GILSON RIBEIRO / CADERNO CULTURAL A TARDE, BAHIA /
Silencioso como o Paraíso.
Lembra
Zaratustra e Maldoror e se esses livros são poesia, a
prosa de Cecim não seria outra coisa. O fascínio sobre
o leitor é permanente. MOACIR
AMÂNCIO / O ESTADO DE SÃO PAULO, SÃO PAULO /
Silencioso como o Paraíso.
O
lírico, o fantástico, a imaginação em sua total liberdade:
a linguagem de Cecim é poética e única.
VOGUE,
BRASIL /
Silencioso como o Paraíso
Os
textos de Cecim fundem profano e sagrado. Após ler Vicente
Cecim a transformação interna do leitor é inevitável.
OSCAR D'AMBROSIO / JORNAL
DA TARDE, SÃO PAULO / Os
divinos autores da década / Viagem a Andara, o livro invisível
O
texto de Cecim funciona como uma partitura musical, que
o leitor lê e relê, descobrindo a cada frase um novo timbre.
VEJA, BRASIL
/ Silencioso como o Paraíso
É
provável que seja a melhor literatura fluindo no Brasil.
CARLOS EMÍLIO CORREA LIMA/
JORNAL DO BRASIL, RIO DE JANEIRO
/ Silencioso como o Paraíso
Depois
de Guimarães Rosa, o paraense Vicente Cecim é o responsável
por um dos mergulhos mais fantásticos e essenciais que
a literatura brasileira já realizou sobre o sentido do
homem. ANTONIO HOHLFELDT/
CORREIO DO POVO, RIO GRANDE DO SUL / Os
jardins e a noite
Comparado
a Guimarães Rosa, o escritor exibe talento e extrapola
na inventividade. Cecim não é apenas um inventor, mas
um descobridor. DEONÍSIO
DA SILVA/JORNAL DA TARDE, SÃO PAULO / Silencioso
como o Paraíso
Há
um real submerso no homem que a literatura linear, de
mera denúncia da disparidade social, não alcança e quase
como o grande visionário, o poeta Novalis, Vicente Cecim
também confirmaria que je poetischer, umso wahrer: quanto
mais poético, mais verdadeiro. LEO
GILSON RIBEIRO/JORNAL DA TARDE, SÃO PAULO /
O universo de Vicente Cecim criado por inspiradas metáforas
e alegorias/A asa e a serpente e Os animais da terra
A
excepcional força poética de Os animais da terra
deriva da duplicidade de sua narrativa, cindida em pla-nos
opostos. A duplicidade favorece a dominância do relato
delirante, que adquire o tom impessoal de um mito, do
qual participam o vento, as árvores, o rio, os animais
da terra - agentes de uma Natureza rebelada, propícia
à ação do servo contra o cego. Esse mito de solidariedade
cósmica não apenas revira a existência cotidiana, para
exibir o seu estofo de sonhos (o estofo de que somos feitos,
na imagem shakespeareana) - tirando proveito do lado ético
da herança surrealista, Os animais da terra emprestam
ao imaginário o caráter de realidade explosiva represada,
de onde provém sempre o apelo poético à renovação da vida.
Uma invenção poética. Que melhor denominação para este
texto libertário, insurrecto? BENEDITO
NUNES / LEIA LIVROS, BRASIL / Os animais
da terra
Ler
Viagem a Andara é penetrar em narrativas poéticas subversivas
e míticas que trazem à tona, sempre renovado, o aforismo
roseano: Viver é perigoso. OSCAR
D'AMBROSIO / FOLHA DE SÃO PAULO, SÃO PAULO /
Viagem a Andara, o livro invisível
Seus
livros mostram suficientemente a disposição do escritor
de fazer de sua ficção um exercício imaginativo. MOACIR
AMÂNCIO / FOLHA DE SÃO PAULO, SÃO PAULO / Os
jardins e a noite
A
Amazônia vista com olhos mágicos. Um texto que ignora
as fronteiras entre prosa e poesia. MÁRIO
PONTES / JORNAL DO BRASIL, RIO DE JANEIRO /
A asa e a serpente e Os animais da terra
Um
delicioso exercício de delírio em que a ficção ajuda a
descobrir a realidade.
IRINEU
GUIMARÃES / MANCHETE, BRASIL / Os animais
da terra
Uma
revelação extraordinária! Leo Gilson Ribeiro fala-nos,
referindo um Guimarães Rosa que obviamente está presente
nestes textos, em "peregrinação álmica" (da palavra "alma"),
e a expressão está certa para nos dizer a estranheza,
a perturbação, os momentos de arrebatamento que nos podem
vir destes textos inclassificáveis, que oscilam entre
uma espécie de deliberada monotonia do ser e o sentido
golpeante das cintilações verbais. O pensamento liberta-se
dos seus lastros terrestres e ganha um estatuto de ave,
uma leveza de princípio do mundo, uma sageza do fim dos
séculos, uma inocência dos extremos. O que faz de Ó
Serdespanto um livro inclassificável é que ele é feito
do círculo crepitante das histórias que se contam e recontam,
do uso visionário das palavras refeitas letra a letra
ou a da lenta respiração da terra. E sobretudo de uma
demorada aprendizagem do espanto de ser e de não-ser.
EDUARDO PRADO COELHO
/ PÚBLICO, LISBOA / Ó Serdespanto
É
um livro total, na sua fusão de poesia, prosa, viagem
utópica, divagação onírica, pensamento filosófico, reinvenção
da palavra e reinvenção do mundo. Uma obra assim pode
transformar a vida de quem a lê, se quem a ler estiver
disposto a deixar-se transformar; mas, mesmo sem correr
o risco dessa entrega, é impossível permanecer indiferente
ao poder mágico da palavra de Cecim, palavra livre e vagabunda
que cria uma cosmogonia própria, a um tempo estranha e
familiar, reconhecível. Chamar-lhe inclassificável é,
talvez, cobardia. Há um nome para esta espécie - rara
- de acontecimentos, mas é um nome ousado e, nestes tempos
de suspeita, pronto a ser banido: estamos perante um livro
sagrado. Não importa quem o escreveu: foi escrito por
um visionário. REGINA
LOURO/PÚBLICO, LISBOA / Ó Serdespanto
Un
récit onirique avec des résonnances archetypiques. BENEDITO
NUNES / BOLETIM DA ASSOCIATION INTERNATIONALE DES CRITIQUES
LITTÉRAIRES, PARIS / Os jardins e a noite
Foi
como poesia que li A asa e a serpente: um poema
lírico-narrativo talvez, ou um poema dramático na terminologia
de Fernando Pessoa, para dar nome a esse texto revolto,
que se desdobra com seu autor - misto de sonho e alegoria,
fábula do sacrifício do algoz impessoal, morrendo e renascendo,
como num ato de expiação infindável, dos míticos desvãos
do inconsciente individual e coletivo. Mas toda fábula
é o contorno imaginário exemplar de uma realidade possível
que se intemporaliza. Esta de Cecim alude, parece-me,
a uma realidade muito próxima que traumatizou sua geração:
a época do grande medo, que se tornou assombração assombração
política e fantasma histórico na cidade do Grão ou em
qualquer outra parte do Brasil após 64. Mais firmeza ganharia
a fábula se maior contraste houvesse entre o plano prosaico
da narração e o plano lírico da expressão poética, conciliando
o sonho e a alegoria. Com a dominância do lado onírico,
ganhou por certo o lirismo, que transforma a narrativa
numa assombração literária impetuosa. Sujeito e objeto
de metamorfose, o texto se interioriza, e o fantasma da
História tende à história fantástica. BENEDITO
NUNES/APRESENTAÇÃO, BELÉM DO PARÁ / A asa
e a serpente
Uma
das grandes diferenças com Cobra Norato, do modernista
Raul Bopp, escritor que também se alimentou do folclore
amazônico, é o tratamento verbal. Ó Serdespanto
não busca o humor e o pitoresco, e sim a estranheza. Apresenta
uma carga intensa de suspense, de vigilância intelectual,
de assombro metafísico e de veracidade, mesmo no sobrenatural.
Ao contrário da trama tradicional que reproduz ações pela
linguagem, a linguagem é a única
ação. FABRÍCIO CARPINEJAR/REDEMOINHO
/
Ó
Serdespanto
Houve
já quem falasse em Amazônias, transfigurações
natais de um paraense, quando uma voz destas excede qualquer
regionalismo básico. Também Herberto não
é a ilha em forma de cão sentado ou Pessoa
a Rua dos Douradores. O cosmos, esse, fica-lhes demasiado
bem. E "Andara é sempre desmoronamentos",
figuração reticente da exultante ruína
da linguagem, ausência soberana dos mapas teóricos
que inventamos. Cabe àquele que escreve "semear
de mãos vazias", na esperança de
um dia colher "o fruto do júbilo obscuro".
São raros os livros que, como Ó Serdespanto,
elidem perguntas e respostas, abrindo-se à desmesura
e à estranheza: "Benvindo ao estranho mundo".
Poderíamos, no entanto, esboçar (e não
mais do que isso) a genealogia em que este livro entronca.
Nesse caso, teríamos de evocar essa espécie
de "comunidade" de que fazem parte os
nomes de Michaux, Herberto Helder ou Maria Gabriela Llansol.
Contudo, a escrita de V. F. Cecim não se confunde,
prossegue "amanhedescendo" e torna subitamente
mais verdadeira a certeza de que "não há
nada a dizer de um poema, pois é ele mesmo o dizer
supremo" (Eduardo Lourenço). MANUEL
DE FREITAS/PÚBLICO, LISBOA/Ó Serdespanto
O
espanto que o livro de Vicente Franz Cecim provoca
nos leitores e a dificuldade em classificá-lo indicam
que não se trata de novidade que se expõe
aos refletores da moda e em seguida se descarta, mas de
algo verdadeiramente novo, com luz própria, que
não nos é imposto como um objeto de mero
prazer ou de conhecimento. Sua ficção se
oferece ao espírito como objeto de interrogação,
de pesquisa, de perplexidade. A leitura de "Ó
Serdespanto" faz-nos mergulhar na noite negra,
profunda, arcaica, de "Andara", na obscuridade
que "rugerreluz", onde folhas e musgos, pedras
e ventos, bichos e homens, gente e não-gente, mortos
e não-mortos, sussurram aos nossos ouvidos, sem
boca nem língua, apenas com o halo diáfano
dos nossos próprios pensamentos, que a morte é
vida e a vida é sonho. NICODEMOS
SENA/O GLOBO/Ó Serdespanto