O SOL NEGRO

Da janela morta a borboleta sai, ilesa, vestida com sua asa de pérola, ganha o imenso céu. Ela ficou escondida no quarto, entre suas paredes vivas que pareciam a engolir - um branco nostálgico quase prata era tomado pela grafite rude onde escrevera palavras quando embebida de sua solidão quase num ato único - correspondiam seus gritos: rabiscos, arabescos úmidos de idéias - cofres perpétuos de insanidades...

Seu cérebro carregava um par de lentes grossas de alumínio fosco: um par de óculos míopes. O que fazia ali era puro desejo, de sentir através das palavras, que acabavam arrancando os sentidos mais íntimos de suas necessidades existenciais.

Acordava e um pássaro pousara nu quase olhando para ela de um fio de rua - suas janelas por descuido ficaram abertas, mas quase sempre mortas para a rua, introspectivamente vomitava sua ira pela luz do sol. O pássaro ficou minutos e ensaiou uma canção rouca de alvorada – ela acordou e quase imperceptível mostrou-se num olho descoberto pelo lençol – dormia nua e quase todas as vezes sua nudez contrastava com sua desordem: um quarto sem início e fim – onde amontoados livros faziam perceber-se como um labirinto em que se perdia quase sempre nas tardes em que lia infinitamente Rimbaud em suas páginas seculares, palavras eternas, amareladas pelo pôr-do-sol.

Um negro saco de dormir cobria sua cama de solteiro e sua pele branca contradizia um sol negro desenhado na parede direita, parecia querer saltar os olhos e os restos de seus cigarros sujavam o chão de taco marrom.

Onde estaria ela, se a cada instante era um gomo de personalidade? Incógnita esfinge revestida de acaso.

Talvez fizesse diferença conhecer alguém que a fizesse amar tão forte ao ponto de não suportar-se liberar suas emoções mais intensas – como a de desfazer-se de um sol negro que a encobria e descobrir-se em sua alma o que pudesse vir a ser um sol de verdade, sem o escuro proposital de um corpo de quarto forjando arbitrariamente uma luz, invertendo seu sentido anti-horário do dia.

O dia grafitado energicamente na penumbra de seus pensamentos... O tempo ali pesado tomando eletro choques e vomitando parágrafos pervertidos cheios de cólera pelo mundo.

Não queria encontrar nada evidente, por isso, esgotava-se nas sensações de pertencer-se primitivamente à sua selvageria. E quando bebia muita cerveja nos bares que freqüentava, quase sempre fazia parecer-se a um porco, com seus cabelos negros descuidados, sujos de gordura soprada pelos ventiladores de teto e enfiava-se num vaso sanitário para vomitar toda a sua vontade de beber, um retorno onírico de desesperanças.

Depois ia para casa fatigada, exausta de ter perdido tantas chances... Como se deixasse de viver por isso.

Deixava-se caminhar com amigos durante as noites mais chuvosas – como a descer a ladeira do Bolonha como se fosse seu desfiladeiro. Lá, poderia sumir de tudo e ser tomada pelo escuro ou multiplicar-se as mil luzes artificiais das ruas inanimadas, como se fossem as casas mais vazias do mundo. Havia um silêncio de sábado, de sinagoga – e uníssono era o som de uma música ferida saindo da boca de um instrumento metálico: agudo/grave/seis pernas marcavam os sólidos paralelepípedos. Sangravam seus sapatos pesados nas veias do chão.

E os momentos todos passaram e o passado não servia.

E todas as formas foram mudando de lugar, a cada dia, a cada banho, a cada beijo...

Via-se apaixonada e os garotos cabeludos foram crescendo e o olhar para trás fora diminuindo de tamanho e sua importância já não era mais a mesma.

A borboleta saíra pela janela morta e sozinha entrou no planeta que escolheu desfrutar suas loucuras preferidas.

À Sombra do Horário

Domingo. O sol não aparece igual, tem um sabor diferente, um gosto de fruto, fruta mais silvestre, gosto da chuva deixado pela tarde de sábado,

Subi a rua para comprar pão, uma bicicleta vermelha no portão enferrujado de uma casa me chamou atenção, ela parecia livre, sem cadeados, e a casa se refugiava no final do terreno, um jambeiro deixava cair suas flores azedas formando um tapete pelo chão, a mesma cor da cereja, a tonalidade da bicicleta, o banco feito de juncos embaixo da sombra. Minha vontade era de ficar.

Domingo, por ter um sabor diferente, nos faz diferentes da paisagem em si. Todos os dias passo por aquela casa, a bicicleta inclusa livre, vermelha como uma cereja, o banco feito de juncos abaixo da sombra, a casa com a mesma sombra do horário em que me desloco para a padaria, menos a vontade de ficar.

A vontade de ficar é em si, livre, inclusa no domingo, como o sol que não aparece igual a todos os dias, um fruto proibido, sentar é tão simples e tão de complexo sentido que meu olhar apenas se desloca entre a vontade e o seguir, o pão é o percurso, o objetivo da saída, do passeio pela calçada, pelo olhar atravessando a matéria das cores, a roda da bicicleta, seus raios como o do sol, sua cor, entre a cereja e o chão florido, cor do tapete úmido, formado pelo jambeiro, fruto mais silvestre, gosto da chuva deixado pela tarde de sábado.

O banco de juncos me convida para uma conversa, um monólogo, um discurso, as palavras soltas, livres como a bicicleta sem cadeado, incluso o silêncio e o frescor da sombra, menos o pão ainda não comprado, obstruído pela passagem, o entrar no jardim, um jardim trancado por um portão enferrujado, mas uma vontade imensa de ficar e continuar minha conversa íntima, um deslocamento entre o pensamento e a não obstrução que o ruído causa, menos o distúrbio de um dia comum de semana, impróprio para um domingo convidativo de um jardim a me esperar sentar-me em suas dúvidas e comodidades, um pedacinho de oásis de terreno solto, desamarrado do concreto armado, um sabor diferenciado de destino, não o de comprar pão ao subir a rua, mas encontrar o paraíso e me deslocar para o silêncio de mim mesma, monólogo tecido próximo a uma casa num final de terreno tranqüilo de um início de uma manhã de domingo.

A bicicleta vermelha, parada, não cansada, uma bicicleta que ao adornar uma micro paisagem de descanso, ajuda o jambeiro a colorir o verde escuro sombreado pelas folhas grandes e pelas folhas amareladas caídas no chão junto ao imenso tapete, um tapete que podia voar e me levar às nuvens, um tapete feito de flores de um pequeno jardim.

Mas o gosto de chuva deixada pela tarde, o gosto silvestre é feito de uma efêmera passagem pela rua num trajeto comum de ir comprar um pão na padaria, que por acaso foi num domingo, que não é diferente por ser domingo um dia que parece ter um sol de uma outra tonalidade, a bicicleta vermelha poderia não estar ali, encostada num muro cheio de formigas tachis, e um portão enferrujado, onde o cachorro sempre por mijar no mesmo lugar fez uma enorme fenda, a fenda punhal do ferro se desfazendo numa lança, uma espada de um guerreiro grego, lugar onde o mijo carcomeu com seu ácido líquido, um pedaço do portão.

O banco ainda é convidativo, juncos, sombras, flores, tapetes, jambeiros, bicicleta vermelha, gosto de cereja, domingo, tudo parece tão familiar que respiro fundo e sinto o cheiro de almíscar me invadindo, parecido como cheiro que algumas tardes têm em comum, em que o sol se atira certeiro sobre a parte mais macia de seu limbo e nos transporta a uma sensação em que tudo parece um imenso lago, tranqüilo, reverberando sua imagem sobre sua margem, um grande cosmos de plantas e flores, e o gosto ingerido de uma manhã fresca, segundos de vida intensificados pela vontade de ficar, livre de ter aonde ir.

O Encantamento

Naquele verde sustentado pelas vigas enferrujadas do edifício assim ele se vestiu, no silêncio o espelho se perfumava de brilho, aquela luz ocre cheia de varizes de teias de aranha diminuíam suas forças, ora entrava devagar a energia e se apagava como a madrugada, insano ele corria para o ferro de engomar, suas roupas tinham mistérios, seriam as únicas coisas com vida por aquelas ruas, ninguém duvida que por ali se pague o medo e se vingue dos padrões, ele é um homem pagão que mistura sua personalidade pérfida com todas as outras idades. Fuma um baseado atrás da cortina, de lá ele olha seu pequeno mundo, entre estrelas confinadas no seu ângulo quadrado de visão que ele submete a visões planetárias. Sua louça sanitária está suja e ele se depila no espelho do banheiro, três azulejos formam o triângulo da pia, depila-se ouvindo o rumor vivo das vilas próximas. Se aproxima do guarda-roupa como um viciado em sapatos, calças e meias, mas não é um viciado, a mesma poeira que perfura a cortina se destila na madeira pouco acetinada do móvel. Ali representa um personagem castrado, um homem, uma esperança de se manter vivo.

O imóvel é velho, úmido, abafado, seu ventilador alcança o ar e corta em mil dejetos a fumaça de sua maconha macerada, o telefone toca a meio fio da rua, o telefone público (seu espaço alvo de ser um projétil de seu vivo esperar ser um espaço privado) em meio ele desce desesperado por sua ligação. Atende, uma voz fina e preguiçosa do outro lado, ele responde com dificuldade mas sem nenhuma ternura.

Volta para o hall, pega seu elevador até o quarto andar e anda por seu quarto como se vagasse, divaga sobre as possibilidades de sua noite, enterrado ali vivo entre seus pertences, sem dinheiro algum que lhe alugue um verbo, que lhe tome uma bebida quente, que lhe pague um jantar decente, que conheça alguém que o deixe às alturas.

Na travessia do quarto para as paredes da sala seu cinismo o interrompe, e se eu não fosse, e se talvez fosse, e se talvez viesse, mas se não viesse? Em pausa agarra suas chaves perfumadas e dá um nó na garganta, sai sem remorsos.

Olha uma vitrine, o manequim é como um sapo morto ressequido, assim ele se sente e se ressente e pressente que sapos podem ser loucos, e que sua loucura o assombra, e que pode não ter a aparência de um sapo morto e que um dia foi um sapo apenas louco, não não é, aquele manequim se projeta em seu interior como um perfume que não sai, o perfume do corpo, o perfume original de sua pele... Ele não se diz mais nada, sai dali olhando para o chão atravessado, em riscos percebe que as membranas de seus dedos estão inchadas, que a calçada tem cortes e entram em suas saliências algumas ervas daninhas, que as calçadas enfim estão rachadas e que a terra se mistura à lama dos esgotos e que as pedras não são mais virgens, mas são pedras trituradas, partes artificiais de cimento dissolvidas por algum baque, pelo triturar dos carros... Mas não se conforma com o inchaço, não se conforma com seus braços, com seu rosto, acaba sentado no meio da marquise, debaixo olha para os fios soltos da última lâmpada rebentada, vê naquilo um gosto quente se ferir porque os fios se encontram e formam faíscas. Formar faíscas é cruzar o pensamento e imaginar que tudo pode ser que tudo pode crer e que sair dali nesse mesmo instante e tentar buscar esse destino pode ser o mesmo que modificar seu ponto de vista.

Ele sai dali à procura do que não tem, quer encontrar em outras pessoas o seu avesso, mas sem nexo percebe que as mesmas pessoas têm objetivos e esses objetivos estão tão bem enterrados em suas caixinhas cranianas mas que pulsam como sonhos, e os sonhos agora divididos entre o ideal e o real se misturam a mundos virtuais, onde os desejos passam por uma camada fina de torpor que se extasia a cada segundo como a faísca na ausência da lâmpada, e depois vazia volta para casa do mesmo jeito que saiu.

Ele, o único personagem dessa história tem registros repetidos, sem escrever em papel algum, sua razão tem ciúme que sua emoção o aliene e entre sem medo nesse mundo sem volta da esterilidade passional, inverso, emoção e razão se fundem sem limites, são linhas paralelas, linhas de dualidade que põem em risco seu processo de consenso.

Ele vê do olho mágico algo a se impor numa das ruas que caminha, alguém parado olhando para o silêncio, alguém que masturba sua turbulência, turvo adentra seu espírito e se observa o quanto desesperado alimenta-se desses desejos...

Ele deseja e vê. O ombro despido, a pele tem ânsia, o rosto escondido na sombra que se projeta um poste entre os fios emaranhados, rota de papagaios perdidos, o cabelo acompanhando o vento quase frio da madrugada, a pensar na solidão que faz olhar o destino de seus olhos um percorrer único, como não estar ali por exemplo, ficar fitando mas o pensamento cheio de palavras.

Assim ele viu alguém, prestes a conhecê-lo, estava ali como se o esperasse, e sem pressa ficou olhando na distância que se fez permitir-se e aproximar-se fazia parte de uma energia que nos instantes que se seguissem poderiam possuir um encanto próprio.

Ao perceber-se invadida por uma sensação perigosa ela se virou e o olhou nos olhos, sem vê-los inteiros, vívidos por umedecer-se involuntários, algo a fez caminhar pelo escuro e ele foi atrás e perguntou seu nome, ela viria assim quase sem nome por isso nada respondeu então beijaram-se, com a intensidade de suas esperanças, beijaram-se ali mesmo no asfalto e tudo se prendeu a um só choque, a lâmpada rebentada do alto da marquise, seus fios pegaram fogo, e o fogo cresceu como a barba dos judeus ortodoxos, cresceu e formou uma enorme mancha no céu escuro, um grande incêndio tomou conta daquela rua, então ouviram-se estrondos daquele beijo, daquele incêndio de fios ansiosos, explodiram as paredes, explodiram as vidraças, explodiram as cadeiras, explodiram as calçadas.

E nada mais se viu na manhã seguinte. Todos estavam desencantados.

Josette Lassance
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