Vestígios de Duília

Foi só enquanto saltava amarelinha sobre o calçamento irregular que ia da casa dela até à esquina, sob a rama de oitizeiros, que me apercebi: nunca mais nos veríamos. Recordo que, tonto, sentei-me no meio-fio e permaneci horas olhando a madrugada rabiscar adeuses naquela porta. Eu ainda a vi num sonho: o ônibus alcançava o extremo da rua e a amada, num gesto insano, lançava um beijo por trás dos vidros; então o sol dourava a rua cheia de pó, andava um alarido de carros no ar, sobre a banca de revista flamejava a cidade irreal. Ela foi embora, dei-me conta ao acordar. “Ela foi embora”, eu disse e mãe pôs de lado a cabeça num gesto seu e acenou assim a cabeça me fitando em silêncio, nesse mistério que as palavras não alcançam. Nenhum símbolo tem a exatidão do silêncio, eu sei, e dito assim soa trágico – eu sou trágico mas não quero ser trágico -, embora esta bebida solitária tenha hoje gosto de pólvora e eu sequer consiga passar minha saudade a limpo. Na noite seguinte vesti a roupa mais sóbria, colhi duas pequeninas flores vermelhas, deixei os cabelos por enxugar, pentear – eles que se arrumassem, se quisessem. Aquele ônibus talvez vadeasse ainda o caldo espesso da noite, longe, atônito. Sentia-me frágil, limpo e docemente triste. Levei as flores ao bar na intenção de dá-las. Em casa, quase amanhecia quando consegui colocá-las num copo d’água antes de despencar bêbado entre a cama e a mesinha de leitura.

A carta veio certa manhã pelo amigo comum e dizia dos filhos do casamento em ruínas no planalto distante. Durante dias levei-a no bolso aonde fosse, parava na rua para acariciá-la, atrás de qualquer coisa das mãos de Duília. Também escrevia, sempre, como se atirasse garrafas ao mar, certo que chegariam a lugar nenhum mas certo de livrar-me da alma que aos poucos destruía e deixava destruir. Os escritos nunca enviados guardei-os numa caixa todos esses anos, até incinerá-los ao certificar-me que o tempo me cobrira de escamas enquanto cercava em muralhas um sentimento desde sempre inútil. Acho que a mãe pressentiu quando libertei no quintal meus pássaros de criação, porque eu nada disse antes de desterrar-me.

Minha solidão tornou-se uniforme, indivisível. É certo que andei por aí, mochila às costas, muitas amantes, raros amores, vi o sol ácido do mar entre pescadores de taínha. Mas por que falar nisso, no mistério das pedras ou na semente que a mão gredosa atirou em solo infértil? Debaixo da pele o rosto da esfinge permanecia violáceo, mais seu olhar, sabor, a flor exótica do rosto. Certa feita, quantos anos depois?, entre búfalos e andorinhas sonhei com uma praia. À tona d’água o sol ensandecia, o vento uivava entre mechas de cabelo, e lá estava ela – gaivota breve e tão translúcida no ar que parecia gota de luz no azul sem fim. Diziam, quando nasci, que chorei na barriga da mãe e cresci entre visões dolorosas que as tias exorcizavam com cânticos, rezas, defumações. Pensava haver-me libertado de tudo isso, do lar não construído, da insurreição não feita. Agora, o que eu tinha? Terra sob as unhas, sonhos derruídos, histórias de pesadelos, mares e pescarias, amores contingentes exatos em si mesmos. Pássaro reencarnado, doeu-me até onde sentia, em todas as dobras do meu tempo, na carne, no sonho voando em círculos.

Atrás dos óculos olho a cidadela de cal e sol na cruz dos rios. Para lá da janela do quarto de hotel a luz devora montes de lixo no leito arruinado das ruas. Choveu parte da noite, vai o dia lavado chegando às onze e estou aqui, barbeado, em bermudas, essa bebida intragável nas mãos, um bem-te-vi trinando na mangueira do outro lado da rua. Deve ter sido este, mal desnuda a pele do primata, o sentimento de poderosa gratuidade que teve o homem ao sentir-se imerso nas coisas do mundo. Neste momento não há deuses além do sol. Só uma voz pontiaguda, rara, gimme somebody, entre guitarras plangentes. Tudo e tão perfeito! Mesmo esta secreta decisão de só estar aqui vendo enquanto posso o vento nas folhas da palmeira nos fundos do hotel; a trepadeira agarrou-se na janela e, por trás dela, os cachos de carambolas, entre laivos verdes, têm a síntese da vida. “Não estou pensando em nada/ E essa coisa central, que é coisa nenhuma/ É-me agradável como o ar da noite,/ Fresco em contraste com o Verão quente do dia”.

Enquanto caminho, o cheiro da chuva impregna o ar. Na outra margem da rua uma mulher estende roupas no varal e tudo é espantosamente singelo e real, como a menina que imita agora mesmo o cantar de galos e sua voz sobrepõe-se a um rádio, restos de palavras, o ruído da carroça puxada a burro que sacoleja sobre o chão molhado; ouço pássaros – as cambaxirras de outrora! – cantarem próximo e vejo uma revoada de pardais entre oitizeiros. Um tanto mais distraído, sou hoje contemplativo do mundo e das pessoas, observo enquanto os pés roçam o sagrado das pedras e revejo agastado os lugares lembrados em noites de angústia e perda. Não há mais qualquer vestígio do corpo de Duília, do seu cheiro de pau-dangola. Eu sou o estranho na paisagem, o estrangeiro do ontem. Não fora o que sou, poeta, seria mar: todo cheio de velas e adeuses. O bar antigo não existe mais, soterrado entre prateleiras e pares de sapatos. Sei que a amada está aqui e penso que se pudesse ocultaria a alma em sobressalto exposta às memórias que vêm do pó, enquanto o aço da arma pesa toneladas no cós da calça. Eu não quero pensar, recordar, olhar sobre o ombro para o mar que uniu-se ao precipício e soterrou pássaros e tigres. Sou o estranho na paisagem, o passageiro do ontem refletido nos vidros da sapataria. O que deve ser feito, será feito, para isso eu vim. Antes, quero apenas rever os olhos da esfinge.

Nas cores da vida, com Rajinheeshi

Esta noite sairei, beberei um vinho tinto, ficarei à margem do rio sob as estrelas. Em junho as noites são frescas e doces, os bares põem cadeiras ao longo do cais e ao embalo das águas passa-se o tempo. Toca às vezes música dos anos sessenta e ouço a brisa em minha pele ressequida por antigos verões. Na outra margem, a praia é um corpo de mulher esparramado ao luar.

A praia!... Do alto da montanha que abriga a igreja de Nossa Senhora da Penha, meu coração incontrolável arremessou-se aos ventos e espatifou-se para sempre nas areias da capixaba Vila Velha. (De Alagoas, não falo. Sob o céu alagoano respira uma pequena sereia de olhos claros e ferro nos dentes que faz programas com marujos e bucaneiros enquanto sonha com um cavaleiro encantado que virá, entre fadas, arrebatá-la num corcel alado).

A luz do verão, para mim, animal notívago, recorda crises de sinusite. Doem-me a fronte e as têmporas, dói o respirar, é difícil conciliar com o sol a ternura da cerveja repousada entre espumas. Um dia, um amigo ensinou-me um remédio caseiro: eu deveria, disse ele, cortar em 4 partes uma buchinha, depois em outras 4 porções e, por fim, colocar uma dessas divisões mínimas de molho durante um dia em 20 mililitros de água destilada. Segui à risca o conselho. Depois bebi, envenenei-me, morri. Não era de beber: era pra botar uma gota duas vezes por dia no nariz.

Todas as praias são bonitas, suponho. Do Nordeste conheço poucas - uma ou duas de Fortaleza, uma de São Luiz - e algumas, no Pará, que sequer constam dos mapas turísticos. Ilha de Romana é uma dessas, até onde sei. Para alcançá-la, tive de adular quase uma semana os pescadores artesanais que partem da corrutela chamada "Abade", entre as espantosas ruínas de Curuçá, e que me largaram em pleno mar, distante da praia, a pretexto de que era raso e não havia porto nem como o barco chegar mais perto da terra firme.

Caminhei mais de um quilômetro no mar, com a água pela cintura, mochila às costas, a companheira travada de pavor. Então o paraíso desabou diante dos meus olhos: uma prancha de areias finas como sal, igualmente brancas, 16 pessoas vivendo entre "currais de peixe", muito sol e uma solidão luminosa sob a qual se passa e repassa o sentido da vida e de repente nada existe além da cumplicidade eleita entre o olhar e a presença áspera do mar.

Recordo que fiquei um mês longe de rádios, tevês, jornais, vendo a luz dar ao mar nuanças do verde-safira ao róseo-açafrão, cores que tive de nomear assim mesmo para melhor retê-las no fundo dos olhos e do coração. Lembro de um único livro que andava comigo, então, entre pães ressequidos, aguardente, charque, açúcar e saquinhos de café: uma coletânea dos ensinos de Rajnheeshi sobre o amor sem fronteiras e sem normas e da necessidade de perceber-se que viver é o ato que se renova permanentemente, a cada instante.

Ademir Braz
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